Não existe nada de novo na frase: "o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo". Mas, todo dia, há um luto novo sobre ela. Todo dia, morre o amor da vida de alguém, que é uma pessoa travesti ou transexual. O da minha morreu no dia 7 desse mês. Há exatos 10 dias para o meu aniversário. No mês do "orgulho LGBTQIAPN+". Minha amiga Tine Taga se foi. Aos 34 anos. Virou estatística.

 

Há quem diga que ela morreu. Há quem diga que foi infarto. Há quem diga que foi pneumonia mal curada. Há quem diga que "para certas doenças, não há cura". Há quem justifique que "chegou a hora dela", ou "cumpriu sua missão". Há quem pense: "encantou-se! era o combinado com o Orum".

 

Para mim, a Tine não morreu. Não porque a gente transforma quem amamos em memória e celebramos a existência em vida, ou após a morte. Não porque existem homenagens programadas. Não porque falamos dela com afeto e amor. Não porque damos play em suas músicas belíssimas. Mas porque foi morta. Assim como a maior parte das pessoas travestis e transexuais do nosso país. E é ironicamente simbólico que isso ocorra num mês de junho, enquanto os calendários dão conta de celebrações, discussões e elucubrações sobre a data, eu tento dar conta, solitária, em posição fetal, do meu luto, da saudade, da pessoa que partiu.

 



 

Para mim, a Tine não morreu. Foi morta. Foi morta pela gordofobia cotidiana. Foi morta pela ausência de afeto. Pela ausência de toque erótico e romântico. Foi morta porque não coube numa máquina de ressonância. Porque não cabia em roupas. Porque não cabia no seu ideal de pessoa aceitável.

 

Algumas pessoas poderão dizer: "é culpa de quem cuidava da carreira dela". "É culpa da família". "É culpa dos amigos". A culpa, minha gente, não leva a lugar algum. Mas, sim, somos todos responsáveis.

 

Todos nós somos responsáveis pela morte da Tine. Não gosto do termo culpa, porque a culpa é vazia. Ela faz parte do gozo. Gira em torno de si mesma e não produz nada. Responsabilidade cabe melhor. E cabe, infelizmente, tardiamente, para daqui em diante. É preciso que todos nós nos responsabilizamos pelo assassinato da Tine.

 

Sim! É preciso nomear o que houve. Não dá para dizer que uma pessoa de 34 anos "morreu", quando, meses antes, precisou de um exame de ressonância e não pode fazer por não caber na máquina.

 

Alguns dirão o já habitual: ah, mas era só emagrecer. Sério?! Hoje mesmo chegou no meu e-mail um release com o título: Obesidade e sobrepeso devem afetar 68,1% dos brasileiro até 2030. A pesquisa foi divulgada no Congresso Internacional sobre Obesidade (ICO 2024) nesta semana em São Paulo. Ok. E o que vamos fazer diante disso? As únicas políticas públicas do setor são voltadas ao emagrecimento. Mas, e enquanto não consegue emagrecer, o que a pessoa faz?

 

No caso da Tine, ela morreu. Ou foi morta, como tenho preferido dizer. Foi morta por não caber.

 

A pergunta feita pela abolicionista e ativista Sojourner Truth "e eu não sou uma mulher?" referindo-se ao fato de ser uma mulher negra e não ser vista como a categoria mulher caberia aqui, adaptada para os atravessamentos travesti e gorda. Já falei sobre o tema aqui.

 

Havia uma fetichização do corpo da Tine Taga. A nossa "estrela do Carnaval", julgada por mulheres cis e magras, por "se vestir mal", sem ter seu lugar de travesti e gorda considerado na hora de comprar roupas. Quais as opções e possibilidades? Como não se sentir humilhada numa loja ou provador, se era um corpo que sequer poderia existir nas ruas?

 

Tais provocações me fizeram escrever o texto "Virgínia não quer mais sair de casa" no meu livro "gasolina & fósforo" e dedicá-lo à Tine. Que bom que o fiz em vida. Nunca sabemos quando é a última vez. Mas, sei, intimamente quando foi a vez que a convidei para um sarau e pude ler, para ela, olhando nos olhos, o quanto sentia muito por ela não poder existir. E lamento que tenha existido por tão pouco tempo.

 

 

"Para mim, a Tine não morreu. Foi morta. Foi morta pela gordofobia cotidiana. Foi morta pela ausência de afeto"

Xuão/Divulgação

 

A pesquisadora Maria Tereza Chehab cunha, recentemente, o termo "gordocídio" para explicar o que ocorre com pessoas gordas. De acordo com ela, "gordocídio é a eliminação sistemática e intencional de pessoas gordas em uma sociedade, seja por meios ativos (aplicação de forças que resultem na morte, como a submissão de pessoas gordas à cirurgias de risco apenas para fins de emagrecimento e, muitas vezes, sem qualquer orientação quanto aos riscos envolvidos) ou passivos (negligência e desassistência do estado, ao negar acesso a direitos fundamentais, como a ausência de políticas públicas voltadas para a qualidade de vida e saúde de pessoas gordas). Assim como a palavra genocídio, gordocídio é um neologismo criado por mim, justamente para enfatizar esse local de 'morte' e de extermínio específico de pessoas gordas. Nesse contexto, sempre destaco as matérias que demonstram as mortes por omissão do Estado: falta de macas em hospitais, pessoas gordas aguardando atendimento e falecendo nas filas do SUS, pessoas gordas fazendo exames em zoológicos por ausência de equipamentos nos hospitais públicos e privados. O gordocídio é uma consequência da patologização e animalização e é, sobretudo, intencional. Em uma sociedade em que a única política pública de saúde para pessoas gordas é bariátrica e ainda há projetos para 'erradicação da obesidade', vivemos, na realidade, um programa eugenista que não enxerga a pessoa gorda como um ser possível e que merece qualidade de vida como todos os demais. Literalmente visam nos exterminar e não escondem esse objetivo. A autora Karen Slindvain Florindo, em suas pesquisas, fala bastante sobre o 'lugar de morte social' das pessoas gordas e o gordocídio é um ciclo: morte social (causada pela estigmatização e discriminação), morte física e morte epistemológica (morte dos nossos saberes, da nossa epistemologia, como Malu traz em suas pesquisas). Ela engloba esses três aspectos. O termo se envolve diretamente com a concepção de necropolítica, de Achille Mbembe, na medida em que se trata de um Estado ou sociedade determinando em que casos a morte é legitimada. Ou seja, não se trata apenas do Estado deixar morrer, mas também de fazer morrer por meio de práticas de gerenciamento da morte para o controle da população desviante a ser erradicada", explica.


Você pode estar se consolando, dizendo: mas eu sempre a tratei bem. Sim, como ela mesma fez um post certa vez: todos tratavam, no geral. Mas, poucos escolhiam. E essa escolha inclui se implicar no que o corpo dela representava.


Tine foi brilhante. Gigantesca. Nossos carnavais não serão mais os mesmos, é fato. E nem a minha percepção da vida. Ela fica ainda mais efêmera, ainda mais urgente, ainda mais numérica. Tine tinha fé na arte.


É absolutamente urgente que a gente pense: como pode alguém que canta tão bem, com tanto talento, com tanta fé na arte, tenha sido assassinada aos 34 anos? Tine morreu de depressão. O que causa a depressão? Além do capitalismo (rindo de nervosa), podemos elencar, num primeiro momento, a transfobia e a gordofobia. Tine não se sentia humana. Escolhida. Tine estava impedida de andar. Tine sentia dores, físicas e na alma. Tine morreu lutando para viver. E a responsabilidade é nossa.

 

Acho lindo, belíssimo e importantíssimo que façamos shows em homenagem a ela. O nome dela deve sim ecoar. As músicas devem ser ouvidas, bem como os áudios que ficaram no WhatsApp, rindo, divagando, contando e trocando sobre tantas coisas.

 

É lindo. Mas, nos responsabilizar vai além disso. Vai em nome de uma luta para que outras pessoas gordas - eu, alguns amigos próximos, etc - possamos fazer exames de ressonância magnética e caibamos na máquina. Que caibamos nas macas hospitalares. Que caibamos nos imaginários. A responsabilidade vai em incluirmos pessoas trans e travestis nas nossas opções de afeto romântico. Quem chorou no velório da Tine e já tinha pensado nela como um corpo a ser amado? Como alguém com quem transar? Como alguém para se namorar? E a gente só vai se responsabilizar e se livrar do sentimento inútil da culpa quando nos implicarmos nessas questões.

 

Não vai adiantar me abordar no velório e me dizer: poxa, você é psicanalista, vamos nos cuidar. Sim! Vamos. Mas vamos também exigir que o investimento público do "combate à obesidade" (termo que odeio), não seja sobre combater os corpos gordos e matá-los como fizemos com a Tine, nem sobre emagrecimento compulsório, nem sobre responsabilizar meritocraticamente a pessoa que não conseguiu emagrecer "a tempo" de viver. Mas que seja sobre investimento público em saúde e acessibilidade.

 

Não resolve que sintamos saudade ao mesmo tempo que pensamos: ela deveria ter se esforçado mais. Uma existência é coletiva. A gente se reconhece no outro. E nós, enquanto outro, fomos muito duros com a Tine. Fomos brutos. Fomos intolerantes. Fomos impacientes. Fomos negligentes. E, digo isso também entendendo que estamos todos fodidos e fizemos o melhor que conseguíamos em muitos momentos. E não foi suficiente.

 

Sinto raiva por ler, nas redes sociais, os comentários revestidos da falsa preocupação com a saúde - minha, da Tine, de qualquer pessoa gorda - que dá conta de dizer que estamos doentes, mas não consegue sequer se movimentar para acolher. Sinto um ódio absoluto quando tenho que ler: sua amiga morreu porque era obesa. Obesidade mata.

 

Sabe o que mais mata? Gordofobia. Sabe o que mais? Transfobia. Sabe o que mais? Desgoverno, falta de vacina, pandemia, falta de investimento em cultura. Sabe o que mais? Redução de recursos na área da cultura. Isso tudo mata. Mas, claro, quem quer tapar o sol com a peneira e se esquivar da própria responsabilidade vai dizer: era gorda. Era. E daí? Por isso "merecia" morrer? Falas assim não violentaram apenas a Tine, que, infelizmente, já está morta. Me violentam também. E se somam a uma falta de fé na vida que é crescente. Como se manter existindo num mundo que mata meus iguais e debocha disso o tempo todo? Chorar pela Tine e não mover um músculo para tornar minha existência mais palatável não muda nada. Me pergunto sobre como não enlouquecer com essa dor?

 

Que a fé da Tine na arte seja também a nossa na vida e na nossa responsabilização pelo assassinato dela. Que a gente não lave nossas mãos - que ora, ora, vejam só, estão bem sujas de transfobia e gordofobia - nas pias das homenagens que são esquecidas em alguns meses e nem nos apontamentos de dedos a quem vai "ganhar dinheiro" com a obra dela. Que coloquemos essas mesmas mãos na consciência e pensemos: o que estamos fazendo para evitar matar outras pessoas que nos são tão importantes como a Tine.

 

Para mim, pessoalmente dizendo, Tine representava um corpo incrível no mundo. Saber que não consegui, de alguma maneira, impedir que ela fosse assassinada e que, de alguma forma, contribuí com isso, me dói uma dor inédita e profunda. Me dói saber que não festejaremos mais o Carnaval, no bloco que acolhia nossas dissidências de um jeito tão bonito. Me dói saber que não trocaremos mais sobre impressões sobre corpos, sobre as músicas novas, sobre as letras das músicas, sobre o que elas mexem e movem nas estruturas, sobre bobeiras e coisas engraçadas. Dói saber que tudo é uma lembrança e o que a minha memória for capaz de alcançar e criar a partir disso. Dói saber que o grande ato de um corpo é existir e que a Tine teimou muito nisso. Insistiu. Nomeou. Atinou-se. Pulou na vida travestida. Foi plataforma da dignidade (ainda que por pouco tempo).

 

Eu queria ter escrito um texto terno, falando dos nossos carnavais, dos nossos corpos alegres, no bloco, nos ensaios, na vida. Queria fazer um texto sobre os saraus, sobre a primeira vez que vi a Tine montada, queria fazer um texto sobre nossos rolês, nosso encontro nessa vida, sobre o tanto que eu a xavecava e ela nunca me dava moral. Queria fazer um texto sobre a grandeza de alguém que, mesmo com medo, existiu. Queria dizer da amiga que sinto falta. Da artista gigantesca que a cidade perdeu. Queria rir de vê-la no caixão com o vestido que o Paulinho não te deixou usar no bloco porque já tinha feito um figurino, queria rir, com a Tine, da cena do secretário de cultura ajeitando a bandeira LGBTQIA+ do estandarte sobre o caixão, queria dizer que foi uma cerimônia bonita, com batuque, como deveria ser. Queria dizer que fizemos de tudo para que a identidade de gênero fosse respeitada. Queria só que a vida tivesse sido mais gentil com uma existência. Queria que as pessoas tivessem sido mais amáveis.

 

Queria que houvesse mais tempo nesse mundo para que passássemos com as pessoas que nos identificamos e que não fôssemos tragado por uma obrigação de fazer dinheiro o tempo todo, de entregar uma performance tão pouco emocionante. Queria tanta coisa. Mas, queria, sobretudo, não ter que fazer esse texto, que guarda muita raiva - e amor, por ter visto alguém tão incrível partir tão cedo, entrar pra uma estatística dolorosa, não poder mais estar conosco nos carnavais. Queria só não ter que concluir que a minha amiga não morreu, foi morta. E que todos nós negligenciamos a existência que hoje nos faz tanta falta.

 

Vai, Tine, colorir o céu com pincelidade e as tuas cores. Com amor e fúria, Jéssica Balbino.

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