"A criança gorda que é impedida de brincar na escola, que é levada compulsoriamente a consultórios médicos" -  (crédito: Arquivo pessoal)

"A criança gorda que é impedida de brincar na escola, que é levada compulsoriamente a consultórios médicos"

crédito: Arquivo pessoal

  

Eu tinha quatro anos na tarde que descobri que era gorda. Ali, no pátio da escola, ridicularizada, apontada e impedida de brincar com outras crianças - pelas próprias crianças - eu me encolhi, tentando caber numa expectativa que eu sequer sabia que existia. Até aquele dia, eu era uma criança alegre, divertida e que gostava de estar no meio das outras crianças. Desde então, passei a me esconder, a tentar tapar minha calcinha que teimava em aparecer embaixo da saia vermelha de pregas do uniforme e a ser menor.

Em casa, passei a questionar meus pais: por que eu sou gorda? E, na vida, a questionar Deus: por que as outras crianças são menores, podem brincar e se divertir e eu não? Sempre imaginei que havia feito algo muito grave, no auge dos meus quatro anos de vida, para ser punida desta forma.

 

A única política pública para as pessoas gordas, atualmente, é o emagrecimento. De todo investimento feito no setor, nenhum é pensando em acolhimento, em tratamento, em saúde física e mental, mas em fazê-las caber compulsoriamente.

 

 

O filósofo Paul Preciado tem um texto-hit onde questiona: quem defende a criança queer?. Caberia aqui uma questão ainda maior, com perdão do trocadilho: quem defende a criança gorda?

 

A criança gorda que é impedida de brincar na escola, que é levada compulsoriamente a consultórios médicos, apertada, apalpada, cutucada e enfiada em dietas aos sete anos, que é impedida de comer doces, guloseimas. Que é forçada em caber em roupas que não foram feitas para o seu corpo. Que aos 10 anos tem que se vestir como uma senhora de 87 anos, porque tudo que cabe no corpo dela é uma blusa com estampa floral numa loja de avós já que não importa quanto tempo passe, não se há interesse em fabricar roupas de tamanho grande que sejam descoladas e estilosas.

 

 

A criança gorda que ouve, o tempo todo, que se não emagrecer, não será amada. A criança gorda que só quer um abraço, mas recebe olhares de nojo e rechaço porque ousa, mesmo sem saber o que isso significa, desafiar a normatividade dos corpos magros. A criança gorda que é lida como doente, mas tratada como criminosa, como se, ser/estar gorda fosse culpa dela.

 

Quem acolhe a criança gorda? Quem diz à ela que tudo bem ela ter o corpo que ela tem e que isso não é sobre ela, mas sobre diversidade? Quem alimenta a criança gorda com alimentos nutritivos, saudáveis e preparados com amor? Quem defende o direito da criança gorda ser uma criança? Quem defende que ela pode brincar? Quem defende que ela pode amar, ao chegar na adolescência? Quem defende que ela pode vestir o que quiser e não apenas o que couber? Quem ama e não esconde a criança gorda? Quem se orgulha e não sente vergonha com um filho/a/e gordo? Quem esconde as balanças de casa da criança gorda e a ensina a se amar no reflexo do espelho? Quem fabrica bonecas gordas e fora do padrão? Quem exige que existam Barbies gordas em tempos que se ovaciona produções sobre a boneca em nome de um feminismo esvaziado, branco e ainda, patriarcal?

 

Quem defende os direitos da criança gorda de crescer num mundo que não a violente? Quem defende a criança gorda numa consulta médica? Quem protege a criança gorda do bullying em todos espaços que ela frequenta? Quem defende a criança gorda diante de um uniforme escolar que não cabe? Quem defende a criança gorda que sonha em ser baliza durante o desfile de 7 de setembro na escola? Quem defende a criança gorda que quer ser a noiva da festa junina na escola?

 

Quem acolhe o choro da criança gorda? Quem diz a ela que ela pode ter a profissão que ela quiser? Quem defende a criança gorda da professora que faz piadas em tom jocoso sobre corpos gordos na sala dos professores? Quem acolhe a criança gorda que faz o recreio sozinha porque ninguém quer brincar com ela? Quem balança na gangorra com a criança gorda?

 

No Brasil, dados do Ministério da Saúde informam que 340 mil crianças entre 5 e 10 anos são gordas. Já o Atlas Mundial da Obesidade 2024 projeta que 50% das pessoas entre 5 e 19 anos terão sobrepeso em 2035. O Brasil, segundo os mesmos dados, tem uma taxa de crianças gordas quase três vezes maior que a média mundial.

 

Não é possível que a única medida para isso seja: emagreçam. Não dá para conceber que a "solução" seja essa. Sem que estilo de vida, de alimentação, classe, raça, e hábitos sejam considerados. Para além disso, sem que essas crianças e adolescentes sejam cuidados.

 

Em 2019, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) publicou um relatório em que alertava para um risco de aumento entre o suicídio e o sobrepeso das crianças e adolescentes no Brasil. E, veja bem, não estamos falando de mortes por questões ligadas diretamente à saúde crônica das crianças e adolescentes gordos, mas, da falta de pertencimento social, de vínculo, de afeto, aumento de bullying e outros fatores que levam a morte.

 

Já cansei de fazer esta pergunta nesta coluna, mas me sinto impelida a repeti-la: vocês acham mesmo que emagrecer resolve?

 

Imagine que você tem que se encaixar para se sentir uma pessoa? E se dissermos isso às outras pessoas que sofrem com a desumanização, como pessoas trans, pessoas negras, pessoas indígenas, pessoas ciganas. Vamos mesmo querer encaixá-las à força? Continuar matando-as sem nos responsabilizar por isso? Oferecendo como única solução a adequação? Ou vamos parar e pensar em outras formas de inserção? De amor?

 

Quem são os pais que sonham com um filho/a/e gordo? Que, no imaginário, idealizam uma pessoa gorda que eles vão amar e desejar o melhor sempre? Cadê os pais de crianças gordas que não pensam, o tempo todo, em fazê-lo caber nas próprias expectativas e ainda nos espaços alheios? O que pode uma criança gorda?

 

O que há, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que defenda a criança gorda da opressão estrutural e institucionalizada que é a gordofobia e de como ela vai viver, crescer e existir no mundo que berra, o tempo todo, a vida inteira, na cara dela, que ela não pode existir desse jeito.

 

Sobretudo, quem é que cuida do imaginário da criança gorda? Quem diz que ela pode sonhar o que quiser? Quem é que cuida da saúde mental da criança gorda? Quem é que acolhe a criança que é ridicularizada na educação física e que, aos sete anos, vai para a academia, porque "está gorda demais, vai adoecer". Quem cuida da cabeça já adoecida de uma criança que não pode ser criança?

 

Eu adoraria ter sido criança. Mais criança. Ter sido uma criança sem me importar se eu iria caber. Sem me importar se eu seria amada quando crescesse. Sem ter que me esquivar do bullying diário - que, naquela época, era só brincadeira e hoje, millenials como eu, se vangloriam em longos textões dizendo: na minha época, o gordinho era o engraçado e sobreviveu. Porra, a que custo?

 

A mim, dói muito que eu tenha quase 40 anos e nada tenha mudado, mas piorado. Que as crianças comecem as dietas cada vez mais cedo.

 

O que entendem por proteção à criança gorda é fazê-la emagrecer a qualquer custo. Enfrentando atividades físicas que ela não gosta, como punição, assim como a falta de afeto. Encarando dietas restritivas desde os primeiros anos de vida, ao invés de um comer nutritivo. O que entendem por proteção à criança está ligado à religiosidade, aos pastores que bradam que mulheres gordas não são amadas, que pessoas gordas não entrarão no reino dos céus, que ozempic é o único remédio enviado pelos céus aos mortais para que os mesmos se adequem às normas sociais.

 

Quem protege as crianças gordas da normatividade? Tendo eu sendo uma criança gorda, nunca me senti protegida ou amada nesse lugar, mas impelida à uma magreza que nunca chegou. Eu mesma precisei crescer e impor: ou me amarão assim, como eu me amo, ou não serei amada e tudo bem. O que não vai acontecer será eu me esforçando, para além do que já fiz, para caber.

 

Como alguém que cresceu num corpo gordo, o que eu ouvia eram ameaças e promessas. Coisas como: daqui a pouco, você terá que vir de roupa à praia, pois não existirá roupa de banho que caiba em você, ao mesmo tempo que; se você emagrecer x quilos até tal dia, te dou um presente, um book fotográfico, etc.

 

Nunca aconteceu. Eu nunca emagreci e a recompensa prometida aos corpos magros e disciplinados nunca chegou ao meu. Cheguei ao divã e, antes dele, percebi que a imposição da magreza vinha do outro. Eu mesma, me amava e me gostava exatamente como era/sou. O desejo pelo corpo afinado, dentro da normatividade nunca foi meu. Sempre do outro. Mas, confesso, óbvio, que essa falta de amor vinda do outro e apontada a meu corpo como o culpado me fez crescer - e crescer muito - me sentindo inadequada o tempo todo.

 

Existir como uma criança gorda é ver-se num sistema que castiga todas as formas de dissidência com a ameaça, a intimidação o castigo e, por conseguinte, a morte.

 

Propagandas governamentais, feitas com o dinheiro público, que deveriam combater o preconceito, as doenças, etc, combatem os corpos gordos e ofertam, como única medida, o emagrecimento. E sim, há quem morre diante disso. Eu mesma já escrevi sobre o tema aqui.

 

Hoje, eu quero dizer que todos nós somos culpados pelas infâncias horrorosas que oferecemos às crianças gordas. Pela pressão que exercemos. Pelas imagens que plantamos em seus imaginários. Pelo medo que elas tem de não serem amadas, de não caberem, de não existirem e, sobretudo, de morrerem.

 

Às pessoas gordas, o que é ofertado é o desencantamento. Se não couberem, não sentirão o encanto da vida. E é preciso muito drible, sagacidade, malemolência e asè para não sucumbir à morte simbólica corporal que nos é reservada desde a infância.

 

Construir uma vida em que me senti digna e merecedora de me divertir e não só me encolher num canto, fora da brincadeira, me exigiu um registro simbólico e uma presença de espírito que talvez eu não seja capaz de explicar e dizer sobre. Mas, sei que me recusei ao papel que me foi dado. Eu não seria a criança chorando no canto, impedida de brincar, por causa do meu corpo. Eu me uniria aos demais dissidentes e, juntos, nos divertiríamos, inclusive, às custas de quem nos tentava impedir.

 

Trago mais perguntas do que respostas, mas, posso afirmar que o caminho para a existência plena da criança gorda não é o emagrecimento, mas o cuidado. A escuta. Essa criança não é apenas um corpo. Ela é um corpo que sonha, que se diverte, que come, que corre, que se balança, que assiste TV, que precisa de imaginários para além de princesas e bonecas ultramagras e super heróis musculosos. Ela não precisa ficar um mês sem chocolate e pão. Ela precisa de alguém que olhe para ela e diga: eu te amo, independente da sua forma.

 

Ainda segundo o ECA, cuidar de uma criança é dever de todos, então, mesmo que você não seja pai, mãe, responsável por uma criança, é seu dever também cuidar das que estão no mundo. Não seja o adulto que vai infernizar a vida da criança gorda com ameaças punitivistas, tratando-a como pecadora, criminosa ou doente. Acolha. Um feliz dia das crianças a todas.