Para mim, talvez, esse seja o ponto mais interessante da série "O Segredo do Rio" (El Secreto del Río), que ocupa uma posição de destaque entre as 10 mais assistidas e indicadas da Netflix desde a estreia em 9 de outubro de 2024. A trama mexicana dirigida por Ernesto Contreras, Alba Gil e Alejandro Zuno conta a história dos amigos Erick e Manuel, mas também das muxes, de quem, vejam só, eu nunca tinha ouvido falar, mas estou encantada desde a primeira aparição na filmagem.

 



Vale dizer que, a partir daqui, o texto contém spoiler sobre o que ocorre na série. O cenário rural de uma pequena comunidade de Tehuantepec, em Oaxaca, no México, criam a atmosfera perfeita para a história das crianças, enquanto trabalha temas como culpa, perdão e, sobretudo, identidade e liberdade.

 

 

Erick e Manuel se conhecem na infância, aos nove anos e, apesar das diferenças e estilos de vida, logo tornam-se inseparáveis, defendendo-se de agressões sérias, seja na escola ou na família de um deles. Cheia de mistério, os oito episódios vão avançando sob a expectativa de quem assiste, criando um clima de tensão a partir de um pacto silencioso entre os garotos, diante de um acontecimento trágico que transforma suas vidas para sempre de maneira irreversível.

Série

Netflix/Divulgação

Mas, por incrível que pareça, isso não é o mais interessante da série. Para mim, o que a torna tão especial é o ritmo combinado ao que não é dito. Às histórias que entremeiam a trama principal e me tocam profundamente no lugar que sempre me foi negado: o da dignidade a partir das diferenças.

 

Estamos diante de uma produção audiovisual que não só valoriza os corpos dissidentes, como os coloca em primeiro plano e, apesar do sofrimento, constrói complexidades que estão para além de um órgão genial, de uma identidade forçada ao binarismo ou daquilo que é esperado. Estamos diante da pluralidade ancestral destes corpos. E que bonito que é.

 

Para além da história que conduz a série no arco principal, com os amigos Erick, Miguel e Paulina, temos Solange, uma muxe, como são chamadas as pessoas não binárias que vivem na região. E isso não é uma novidade. A classificação, que no Brasil, o mais próximo seria travesti, existe e é celebrada desde os tempos pré-hispânicos. A palavra é derivada de uma língua indígena conhecida como zapoteca, ainda falada na região.

 

Uma das cenas mais emblemáticas do seriado, para mim, é quando Manuel, prestes a ir, compulsoriamente, embora com o pai, revela a Solange: quero ser muxe. E não poderia ser diferente. Além de perceber-se fora do espectro do gênero binário como era esperado que fosse, Manuel percebe-se também pertencente a um grupo. Percebe-se inserido, acolhido, livre. Ainda criança, mas na possibilidade de ser quem se é, sem ter que se explicar e/ou performar gostar de seios femininos, de futebol e brincadeiras consideradas masculinas e, sobretudo, sem correr o risco de ser violentado.

 

Aliás, a violência é um marcador forte na vida de Manuel, que cresce à revelia do que esperavam dele, mas, sem colocar-se no papel de vitima, guardando para si a palavra Sicarú, dita por Solange à beira-mar, em zapoteca, para definir o que é belo.

 

Solange, a muxe gorda, de tranças longas, chongo (penteado com flores) e roupas tehuanas, (estilo difundido pelo mundo pela artista Frida Kahlo), cuidadosa com as crianças, a quem ensina golpes de autodefesa na prática e na vida, morre alguns anos depois (desculpe o spoiler) e Sicarú volta. Sim, não é mais Manuel, mas Sicarú, bonita, desafiante do gênero, pronta não apenas para assumir os riscos de uma vida fora da norma, mas para bancá-los, como quem não tem medo de ser o que se é.

 

No entanto, a violência ao qual o corpo de Solange é submetido, tendo os cabelo cortados, o chongo, vestido com roupas masculinas, tendo a maquiagem removida e a identidade de gênero - ou a recusa da mesma - apagada antes de ser velada e enterrada.

 

Eu, pessoa física, tive este medo que o mesmo ocorresse com a Tine Taga, minha amiga trans e gorda, que morreu vítima das negligências todas. Ela mesma que, inclusive, me deixou saudades e, ao ver a personagem Solange, associei imediatamente. Antes do velório, meu amigo Paulo Tothy e eu tememos que a identidade dela não fosse preservada. Que o nome social fosse apagado. Que quem ela lutou tanto para ser não fosse respeitado.

 

Na série, monstruosidade - que eu discuto bastante aqui nesta coluna - aparece nas vozes opressivas de homens cuja masculinidade é mais frágil que um copo de cerveja, evitado para que o desejo por corpos não binários e das muxes não apareça, contrapondo-se com corpos que desafiam o gênero desde os tempos pré-histpânicos.

 

Importante dizer que a civilização zapoteca foi uma civilização pré-colombiana indígena que floresceu no Vale de Oaxaca, na Mesoamérica. Evidências arqueológicas mostram que sua cultura teve origem há pelo menos 2,5 mil anos.

 

O antropólogo Pablo Céspedes Vargas, em uma matéria na BBC, informa que "o que conhecemos 'sob os olhos ocidentais' como 'travesti masculino para feminino', 'transexual masculuno para feminino', 'gay afeminado' ou 'gay masculino' é o que parece estar incluído na categoria de muxe, desde que haja também um forte componente de identidade étnica. Ele explica mais no artigo "Muxes at work: between community belonging and heteronormativity in the workplace" (Muxes no trabalho: entre o pertencimento de comunidade e a heteronormatividade no espaço de trabalho).

 

Ainda na série, uma criança não binária é submetida a violências e, na trama, o pano de fundo fica por conta do tráfico humano, tema também reocrrente e característico no México, abordado em outras produções tambem que dão conta da violência que assola o país e as crianças, como o livro "Reze pelas mulheres roubadas", que inspirou o filme "A noite do fogo" e que também acho que vale ser visto. Mas, voltando ao nosso tema principal, são as muxes que dão conta de resgatar a criança e oferecer a ela não apenas a segurança que necessita, mas pertencimento, em um lugar onde se costura, se cozinha, se festeja, sobretudo, os mortos.

 

Por fim, há também os laços familiares aos quais as muxes são privadas, justamente por recusarem o gênero e que a série dá uma pincelada, inserindo uma filha perdida para uma das personagens. Mas, para mim, numa leitura um pouco mais aprofundada, fica a tentativa de um retrato generoso do que são as muxes, respeitando, sobretudo, a identidade cultural do termo zapoteca e da cultura local.

 

Contudo, é importante lembrar que, tanto na série, como no cotidiano do país, embora uma parte da população respeite as muxes, não significa que a comunidade LGBTQIAPN+ viva em segurança ou completa aceitação. Embora a Cidade do México tenha legalizado o casamento entre pessoas do mesmo gênero, o país ainda têm altas taxas de crimes de ódio contra pessoas LGBTQIAPN+ e homens gays não podem servir, por exemplo, as forças armadas mexicanas.

 

A série não se furta, contudo, de mostrar que as muxes são lidas por uma parte da população como iniciadoras sexuais e aberrações, no entanto, mostra também as indignações e, principalmente, a reivindicação pelo lugar, pelo termo muxe - e não homem, mulher ou transexual - e, firma-se ao educar, sem ser uma cartilha, como corpos dissidentes podem ser desejados, amados e, principalmente, respeitados.

 

Por fim, é importante dizer que a série não é apenas um entretenimento, mas também uma narrativa bonita e fora da curva sobre amizade, afeto, corpos dissidentes e identidade, que não fica na superficialidade, mas avança um pouco ao convidar o público, por meio da intensidade narrativa misteriosa. E que um corpo pode mudar a história de uma amizade. Se eu puder resumir em uma palavra: empolgante! Que tenhamos mais e mais narrativas com corpos dissidentes valorizados e sendo amados.

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