Em uma sociedade estruturalmente preconceituosa e discriminatória, há pactos silenciosos que permeiam as relações sociais, mantendo privilégios dos grupos hegemônicos e perpetuando a marginalização de grupos minorizados. Um deles é o pacto da heterossexualidade, um conceito que descrevo neste texto ecoando e me baseando no pacto da branquitude, termo cunhado por Cida Bento em seu ótimo livro.

 

Assim como o pacto da branquitude mantém privilégios da população branca em detrimento de pessoas negras, indígenas e outras minorias raciais, o pacto da heterossexualidade assegura vantagens às pessoas heterossexuais, deixando à mercê de violências e desvantagens as pessoas LGBTI+. Isso acontece porque estamos em uma sociedade em que a diversidade sexual e de gênero é sistematicamente oprimida.



O pacto da heterossexualidade, assim como o da branquitude, é silencioso e eficaz, operando por vezes de maneira sutil, outras vezes de maneira muito explícita. Obviamente, as pessoas heterossexuais não se reúnem às escondidas para combinar de que forma irão oprimir as pessoas LGBTI+ e manter para si os espaços de destaque e poder. Esse pacto é implícito e não precisa ser comunicado verbalmente, pois faz parte da maneira como no dia a dia a discriminação é naturalizada e mantida. Ele se manifesta na imposição de padrões normativos de relacionamentos, na invisibilização de identidades não heterossexuais, na negação de direitos civis básicos a pessoas LGBTI+ e na manutenção de barreiras para o nosso crescimento profissional, por exemplo.

 

O Pacto da Heterossexualidade se sustenta em uma série de privilégios sociais. Vamos a alguns exemplos: heterossexuais andam naturalmente de mãos dadas com seus cônjuges nas vias públicas, enquanto pessoas LGBTI+ precisam pensar muitas vezes se há ou não risco de sofrerem violências verbais ou físicas de pessoas heterossexuais se fizerem o mesmo que elas estão fazendo; o direito ao casamento civil heterossexual existe há muito tempo e não é questionado, já o casamento homoafetivo foi recentemente legalizado no Brasil e até hoje sofre questionamentos por um Congresso Nacional LGBT+fóbico; pessoas heterossexuais não precisam se preocupar se a sexualidade vai atrapalhar a carreira, enquanto pessoas LGBTI+ são preteridas por líderes de empresas e profissionais de RH em processos seletivos e têm problemas em suas progressões de carreira pelo simples fato de serem quem são; há sempre a necessidade de se “assumir” LGBTI+ para famílias e isso pode gerar grandes problemas e até expulsão de casa pelos pais, mães ou tutores, mas a heterossexualidade é compulsória, não precisa ser assumida e não gera problemas familiares. 


Pessoas heterossexuais privilegiam umas às outras nas relações pessoais e profissionais. Um exemplo é o fato de que pais, mães e tutores muitas vezes tentam afastar seus filhos, já na infância e adolescência, de amigos e amigas (outras crianças e adolescentes) que pareçam ser LGBTI+ e tentam manter vínculos apenas com quem também pareça ser hétero. Essa ação ensina para as crianças que existe uma hierarquia social que deve ser levada em consideração, o que ajuda a manter o pacto quando se tornam adultas.

 

Outro exemplo de como as pessoas heterossexuais se privilegiam: em muitas empresas, há a LGBT+fobia institucional. Lideranças e profissionais de gestão de pessoas, por vieses inconscientes ou de maneira consciente, avaliam negativamente pessoas que pareçam ou se assumam LGBTI+. Retiram delas oportunidades de contratação ou de receber promoções. Essas oportunidades, obviamente, são direcionadas a pessoas heterossexuais.

 

As pessoas LGBTI+ são 10% da força de trabalho das empresas, segundo pesquisa do GPTW. Elas vão perdendo espaço à medida em que cresce o nível hierárquico, indo para 6% nas primeiras posições de liderança, depois caindo para 4% e chegando a apenas 0,5% dos CEOs das maiores empresas, de acordo com pesquisa da Out Leadership. Ou seja, o Pacto da Heterossexualidade retira também a renda das pessoas LGBTI+.

 

Pacto da cisgeneridade

Além do pacto da heterossexualidade, é importante citar também o pacto da cisgeneridade, que na mesma lógica mantém o preconceito contra pessoas transgênero. Pessoas cisgênero têm historicamente privilegiado umas às outras e marginalizado as pessoas transgênero, negando-lhes reconhecimento social, acesso a serviços básicos e segurança física.

 

Quando falo sobre os privilégios mantidos entre pessoas heterossexuais e cisgênero, não estou invalidando suas lutas nem dizendo que eles não têm dificuldades a superar. Obviamente, há pessoas cis e hétero ricas e pobres, brancas e negras, homens e mulheres, com ou sem deficiência, etc, assim como há pessoas LGBTI+ que usufruem de outros pactos, como o da branquitude. Nem todas as pessoas cis e heterossexuais usufruem os privilégios desse pacto plenamente e da mesma forma, mas vale ressaltar que a orientação afetivo-sexual ou identidade de gênero não foi uma barreira para elas e isso já é um privilégio.

 

A estrutura LGBTI+fóbica da sociedade trouxe vantagens às pessoas cisgênero e heterossexuais, mesmo que tenham passado por outras questões difíceis ou encarado outros preconceitos. Para romper com os pactos da heterossexualidade e da cisgeneridade, é necessário um esforço coletivo de desconstrução e conscientização, bem como promover políticas e leis que garantam igualdade de direitos e oportunidades para todas as pessoas, independentemente de sua orientação afetivo-sexual ou identidade de gênero.

 

Nas empresas, precisamos de regras, políticas, comunicação e treinamentos que ajudem a romper com os comportamentos que mantêm esse pacto. É essencial que pessoas heterossexuais e cisgênero reconheçam seus privilégios e se tornem pessoas aliadas na luta por justiça e equidade para a comunidade LGBTI+. Isso requer uma reflexão constante sobre as próprias atitudes e comportamentos, além de um compromisso ativo em combater a discriminação e o preconceito em todas as suas formas.

 

¹Cida Bento, em seu livro Pacto da branquitude (que serve como base para este texto que extrapola o conceito da autora para falar de população LGBTI+), explica como existem diversos pactos, quase sempre não explicitados, mas marcados por relações de dominação de gênero, raça, classe, origem etc. Assim, existem pactos semelhantes ao da branquitude, como os pactos da Heterossexualidade e cisgeneridade sobre os quais aqui discorremos, mas também um Pacto dos Homens, que sustenta o machismo, um pacto da juventude, que perpetua o etarismo, um pacto capacitista, que perpetua preconceitos contra pessoas com deficiência, entre outros que poderíamos continuar nomeando. Todos esses pactos mantêm uma estrutura de poder baseada na exclusão e na opressão.

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