“Volta até 20h50, senão colocamos fogo na sua mochila”, brincaram os jovens que cuidam do guarda-volumes na Bienal de São Paulo. Eu, que estava entrando às 20h após ter dificuldades em achar a entrada mal sinalizada, balancei a cabeça e concordei. Afinal, mineiro tem medo de São Paulo e eu já estava congelando com os 15ºC que fazia - significa neve para belorizontino - e receosa com a dificuldade em pegar transporte de aplicativo por causa do show da Taylor Swift, que, inclusive, foi o motivo da minha viagem.
Por ter pouco menos de uma hora para ver uma exposição com mais de mil obras, não pisar em uma mostra há mais de dois meses e não escrever sobre arte há quase um ano, meu olhar estava inicialmente enferrujado na 35ª Bienal de São Paulo. Eu sentia um FOMO (fear of missing out ou medo de ficar de fora) por saber que era impossível ver todas as obras naquele dia (na verdade, se eu olhasse para cada uma por três segundos seria possível sim!). Nessa ansiedade de tentar ver o máximo de trabalhos possível, eu olhava as obras e não entendia nada - quem nunca passou por isso numa exposição?
Então, comecei a observar as pessoas. De longe, eu era a menos descolada ali. Todo mundo parecia pronto para a temperatura congelante da cidade, vestia tons sóbrios ou tinha cara de ter saído direto da Vila Madalena. Essas pessoas se moviam no ritmo apressado de paulistano e também não tinham tempo para as obras. Nas poucas vezes que paravam perto de uma arte, era para tirar uma foto - delas mesmas, a obra só de fundo - para o Instagram.
Criada em 1951 por um dos empresários mais ricos da capital paulista, Francisco Matarazzo Sobrinho, conhecido como Ciccillo Matarazzo, essa bienal é a segunda mais antiga do mundo - atrás somente da de Veneza - e, por décadas, foi um dos poucos eventos que conseguiu desviar os olhares do sistema da arte do Hemisfério Norte para o Sul. Sua importância é tamanha que na 1ª edição reuniu trabalhos de Picasso, Magritte e Brecheret.
Já na 35ª, o título Coreografias do Impossível junta 121 participantes com obras expostas de forma não hierárquica e proposta curatorial que dança na tendência de diversidade do mundo da arte: a seleção preliminar de artistas tinha 92% de participantes não brancos e 76% vindos de países de fora do circuito hegemônico das artes visuais. A expografia não divide as obras por temas ou cronologia, mas cria movimentos com diferentes ritmos que formam uma coreografia. Parece abstrato, né? Mas é o seguinte: no primeiro andar do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, onde passei mais tempo, as obras são expostas com bastante espaço entre elas, algo raro na maioria dos museus, que sofrem com limitação de espaço. Essa disposição cria um ritmo que permitiu que eu conseguisse, aos poucos, observar, refletir, digerir, e acima de tudo, sentir cada obra na sua individualidade. E foi uma em particular que me chamou atenção.
Subindo do primeiro andar para o terceiro - percurso indicado pela curadoria - vi pilares azuis no centro do pavimento. Eles tinham grafismos dourados que lembravam as linhas de nasca. Entre as colunas, quatro esculturas em grande escala do artista salvadorenho Guadalupe Maravilla estavam expostas. Com bases de metal, gongos se erguiam do chão como se estivessem prontos para serem tocados. As estruturas tinham composição variada com objetos como farol de carro; boca; bucha; cabaça seca; mão roxa de plástico fazendo joinha; incenso queimado; espelho; cobra de plástico; pulmões de vidro; e até um capacete.
As colunas azuis são a obra Tripa Chuca, cujo nome, apesar de infame no Brasil, é de um jogo infantil de El Salvador. Nele, os participantes desenham linhas que conectam pares de números sem encostar em outros números ou linhas. No final, um desenho abstrato que parece um mapa é formado. O artista costumava brincar com o jogo aos oito anos de idade, quando fugiu da guerra civil de El Salvador para os Estados Unidos junto com outras crianças e desacompanhado da família.
Já as esculturas se chamam Disease Throwers (lançadores de enfermidades) e misturam materiais orgânicos com industrializados e instrumentos musicais. A partir da vibração delas, o salvadorenho propõe espaços terapêuticos e um ritual coletivo de cura. Maravilla realizou, inclusive, duas ativações das peças em cerimônias que envolveram tocar os gongos e outros instrumentos em setembro. A jornada de cura do artista envolveu tanto seus traumas da guerra e da migração, quanto a recuperação de um câncer de cólon que teve há alguns anos. Sua cura veio não só através da medicina tradicional, mas também por terapias alternativas, como banho sonoro, que é o que ele propõe na performance com esse trabalho.
Mesmo sem a ativação, as obras de Guadalupe Maravilla conseguem imergir o visitante no seu complexo universo que vai de símbolos pré-coloniais americanos a objetos contemporâneos. O uso da cor azul nas pilastras traz tranquilidade e faz o espectador esquecer que está no coração da maior cidade do país. Fiquei tão admirada pelo trabalho do artista que quase perdi a hora. Olhei para o celular, eram 20h45. Precisava chegar em cinco minutos no guarda-volumes localizado a centenas de metros de onde estava e pegar minha mochila antes que a jogassem fora.
Consegui ver cerca de 20 obras, e o que me chamou mais a atenção na Bienal foi a quantidade de instalações, que sempre ficam muito limitadas nas salas apertadas de museus. A mostra permite que a gente conheça o trabalho de artistas que dificilmente veríamos em exposições individuais em São Paulo, ainda mais nas cidades fora do eixo Rio - São Paulo. Para quem quiser conhecer, a Bienal acontece até o dia 10 de dezembro no Pavilhão da Bienal no Parque Ibirapuera.