Quando tinha 13 anos, pisei pela primeira vez no Inhotim. Durante uma excursão de escola, visitei a então recém-inaugurada Galeria Cosmococa, de Hélio Oiticica e Neville D’Almeida. Nas minhas idas seguintes, cada vez com uma companhia diferente que ainda não conhecia o museu, a visita à galeria se repetiu - talvez pela curiosidade de quem me acompanhava em ver o porquê da fila tão grande, talvez porque eu ache que é um dos poucos trabalhos de arte contemporânea que não precisa de plaquinha ou educativo para ser entendido: você simplesmente sente. É com base nos sentidos que tanto a Galeria Cosmococa quanto a exposição Delirium Ambulatorium, de Hélio Oiticica (1937-1980), no Centro Cultural Banco do Brasil Belo Horizonte (CCBB BH) conduzem os visitantes.

Assim como nas visitas ao Inhotim, fui acompanhada para conhecer a exposição do CCBB. Dessa vez, eu estava com a minha mãe, que como a grande artista que ela se autointitula, estava pronta para desafiar o status quo do museu e quase ser expulsa da instituição. A mostra segue ordem cronológica das obras do artista carioca, o que somada aos ótimos textos curatoriais de Moacir dos Anjos, torna a visita didática para quem não conhece Oiticica. A exposição começa a partir de pinturas geométricas feitas com tinta guache sobre papel cartão, em 1955, quando o artista era membro do Grupo Frente, caracterizado pela rejeição à pintura modernista brasileira e uso da linguagem geométrica para a experimentação. Como a maioria das pessoas presentes, que talvez esperassem as cores vivas de Oiticica e só encontraram tons sóbrios, minha mãe olhou as pinturas por somente um minuto e seguiu para a próxima sala.

A partir de 1959, o carioca fez parte do movimento Neoconcretista, que reinterpretava o construtivismo (estilo que rompia com a tradicional preocupação estética na arte e visava a construção da obra por meio de feições industriais e composições geométricas) a partir da expressão e da subjetividade. Apesar dos termos um pouco complicados, a obra de Oiticica é bem simples. Desse movimento, estão expostos trabalhos que vão até meados da década de 1960, e que incluem a transição das duas dimensões dos quadros para as três dimensões das esculturas. A maioria de suas obras ali são esculturas constituídas de pedaços de madeira coloridos com formas geométricas.

B18 Bólide Vidro 6 "Metamorfose", 1965

Cortesia do artista/ Divulgação

Nessa galeria aparecem, ainda, duas características marcantes das produções do artista: Bólides, que são estruturas em formato de caixas que contêm diferentes materiais dentro, desde tecidos a espelhos e água; e obras interativas, como uma estrutura de madeira com portas onde você pode entrar e mudar peças de lugar, e capas de tecido chamadas Parangolés - trabalho mais famoso de Hélio Oiticica.

O que é um Parangolé?

Parangolés surgiram do contato do artista com integrantes da escola de samba de Mangueira

Divulgação/ Diego Bressani

Os Parangolés são capas, bandeiras e faixas feitas para serem usadas pelo visitante, de forma que, quando a pessoa interage com o trabalho, ela sai da posição de espectador e torna-se parte da obra de arte. O projeto surgiu da convivência do artista com os integrantes da escola de samba de Mangueira, que motivou Oiticica a romper a fronteira entre obra e espectador e convidar o público a criar, já que são as pessoas que dão vida aos Parangolés. Esse é um dos momentos que mais chamam a atenção do público na exposição, porque é impossível passar pela obra e não querer interagir. Para os mais tímidos, o curador colocou até vídeo do trabalho sendo ativado por um grupo na década de 1970. Já os mais corajosos nem precisam de incentivo, como minha mãe, uma senhora de 67 anos que escolheu vestir um Parangolé escrito “estamos famintos” e ainda afirmou que era dançarina do grupo do Hélio Oiticica (como jornalista, eu preciso desmentir: isso nunca existiu).

Mais do que simples capas e bandeiras, os Parangolés têm duas características muito importantes do trabalho do artista que aparecem até o fim da exposição: a antiarte e a relação de Oiticica com as ruas. A antiarte, aqui sob o conceito de rompimento com a tradicional relação de contemplação da obra pelo espectador e proposta de apreciação pelos sentidos, está em obras como B50 Bólide Saco 2 “Olfático” (1967), um saco de couro cheio de grãos de café com um tubo de aspirador para o visitante sentir o cheiro; Sala de Bilhar - D’aprés “Café Noturno” de Van Gogh (1966), mesa de sinuca na qual os visitantes podem jogar vestindo camisas coloridas e na qual minha mãe gostou tanto do conceito de antiarte que atendeu o celular no meio da exposição; e Éden (1969), instalação labiríntica no subsolo do museu que estimula a visão do visitante com várias cores e formas; o tato, através de ambientes com chão coberto com areia, folha, palha seca, algodão, colchão e água; e o olfato, por meio de aroma de incenso em uma das cabines.

Éden (1969) é uma instalação labiríntica que estimula os sentidos

Divulgação/ Tais Stein

Já a relação com as ruas é marcada pelas vivências do artista em Nova York e no Rio de Janeiro, onde teve contato com samba e periferia. No final da década de 1970, a ideia de delirium ambulatorium toma conta das produções do artista como proposta de emancipação do corpo e de brincar com os limites entre museu e rua, e artista e observador. Esse conceito está representado na exposição por obras como PN28 Nas Quebradas (1979), um de seus Penetráveis, como ele chamava suas instalações com experiências sensoriais. Constituído de tábuas de madeira, telhas de amianto, espelhos, cercas e britas, o trabalho, que tenta trazer a sensação de caminhar nas “quebradas” cariocas para dentro do museu, não pode ser percorrido no CCBB. Então, não cometa o mesmo erro da minha mãe de tentar entrar nele.

Penetrável PN28 Nas Quebradas (1979) leva sensação de caminhar na periferia para dentro do museu

Divulgação/ Joana França

A exposição Delirium Ambulatorium permite que por mais de 80 obras de Hélio Oiticica o visitante conheça desde seu início de carreira como construtivista até seus últimos trabalhos totalmente experimentais. Com o questionamento do lugar da rua e do visitante na arte, o artista provoca a mudança em espaços institucionais, como o CCBB, e permite que as pessoas toquem e entrem nas obras. Oiticica morreu muito antes do Instagram ser lançado e obras como a dele serem consideradas “instagramáveis”, mas aposto que ele gostaria de ver o povo levando a sua obra - e cocriando - fora do museu e dentro da internet. Se ele tivesse conhecido minha mãe, talvez até a chamasse para ser uma das dançarinas do grupo dele.

A exposição Delirium Ambulatorium, de Hélio Oiticica, acontece no Centro Cultural Banco do Brasil Belo Horizonte (CCBB BH) de quarta a segunda, das 10h às 22h, até 05 de fevereiro. A entrada é gratuita.

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