No livro “Artes da política: diálogo com Amaral Peixoto”, uma longa entrevista com um dos caciques do antigo PSD, que foi senador, governador eleito do antigo Estado do Rio e embaixador nos Estados Unidos, concedida a Aspásia Camargo, Lucia Hipólito e Maria Celina D’Araújo (Rio de Janeiro: Nova Fronteira/CPDOC-UFF, 1986), a velha raposa política conservadora explica de forma simples e clara a razão pela qual não apoiou o golpe de 1964: era “a morte da política”.
Na cúpula do PSD, seu aliado foi Tancredo Neves, porque o ex-presidente Juscelino Kubitscheck e Ulysses Guimarães, que depois viria presidir o MDB e liderar a oposição ao regime militar, àquela ocasião, apoiaram o golpe de estado no qual os militares destituíram o presidente João Goulart. Ao longo de 20 anos de ditadura, gradativamente, os políticos liberais de todos os matizes derivaram para a oposição. Ao contrário da Revolução de 1930, os militares não delegaram o poder para os civis golpistas.
Havia um golpe em marcha em 8 de janeiro passado. O objetivo era destituir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, quiçá a então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Rosa Weber, que se aposentou este ano. Houve resistência ao golpe na cúpula do governo, liderada pelo presidente do PP, Ciro Nogueira, e pelo ministro das Comunicações, Fabio Faria (PP-RN), com apoio do ministro do Tribunal de Contas da União Jorge Oliveira, que fora secretário-geral da Presidência da República. No grupo de militares palacianos, a única voz discordante era o então ministro de Assuntos Estratégicos, almirante Flávio Rocha.
Embora aliados a Bolsonaro nas eleições, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), agiram como Amaral e Tancredo. Sabiam que a maioria dos políticos teria muito mais a perder com um golpe militar do que qualquer outro segmento da sociedade. Eis a lição aprendida com o golpe de 1964: no frigir dos ovos, não foram apenas o presidente João Goulart, o líder comunista Luiz Carlos Prestes, que articulava a reeleição do presidente da República, e Leonel Brizola (PTB), que almejava seu lugar, que foram os derrotados. Juscelino, que pretendia voltar ao poder nas eleições de 1965, e o governador carioca Carlos Lacerda, cujo sonho era ser presidente da República, acabaram cassados. Previstas para 1965, as eleições para a Presidência da República só viriam a ocorrer em 1989.
Por que lembrar desses fatos agora? A história quase se repetiu. A operação da Polícia Federal para apurar suposta espionagem ilegal pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), deve chegar ao núcleo golpista liderado pelo presidente Jair Bolsonaro, do qual faziam parte militares de alta patente. Segue o fio da meada da delação premiada do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid.
Arapongagem
O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro conta, entre outras coisas, que o quebra-quebra bolsonarista na Praça dos Três Poderes tinha por objetivo, sim, provocar a convocação de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), na qual os militares assumiram o controle da capital da República.
O ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo inquérito que investiga o 8 de janeiro, na decisão que autorizou a operação de busca e apreensão contra o ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem, afirma que o atual deputado federal do PL e candidato de Bolsonaro a prefeito do Rio de Janeiro usou o órgão para fazer espionagem ilegal. Além de obter e repassar a favor da família do ex-presidente Jair Bolsonaro, Ramagem teria bisbilhotado a vida de 30 mil pessoas, entre eles a ex-deputada Joice Hasselmann, o ex-governador do Ceará e atual ministro da Educação, Camilo Santana (PT), e o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, além de ministros do próprio Supremo, entre os quais Moraes.
“Os policiais federais destacados, sob a direção de Alexandre Ramagem, utilizaram das ferramentas e serviços da ABIN para serviços e contra-inteligência ilícitos e para interferir em diversas investigações da Polícia Federal”, afirma o ministro Moraes. A Abin teria atuado ilegalmente também na apuração sobre o caso das 'rachadinhas' no gabinete de Flávio Bolsonaro, senador e filho do ex-presidente; na investigação sobre tráfico de influência contra Jair Renan Bolsonaro; nas ações de inteligência para descredibilizar as urnas eletrônicas e no monitoramento de promotora do caso Marielle Franco.
O presidente do PL, Valdemar Costa Neto, saiu em defesa de Ramagem com uma narrativa de que o Congresso não deveria tolerar a operação de busca e apreensão no gabinete do deputado federal, nem na sua residência, sob o argumento de que o Congresso foi despeitado. Rodrigo Maia, então presidente da Câmara, ontem, disse que foi o contrário: quem atentou contra democracia foi o ex-chefe da Abin. Seria muita ingenuidade Pacheco e Lira saírem em defesa de Ramagem. O que se sabe até agora é a ponta do iceberg golpista.