Entre sorrisos e tapinhas nas costas, o presidente Lula e o governador Tarcísio de Freitas (PR) dividiram o palanque de lançamento do projeto de construção do túnel submerso -  (crédito: Ricardo Stuckert/PR)

Entre sorrisos e tapinhas nas costas, o presidente Lula e o governador Tarcísio de Freitas (PR) dividiram o palanque de lançamento do projeto de construção do túnel submerso

crédito: Ricardo Stuckert/PR

Peço licença ao nosso maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom Jobim, para intitular a coluna parafraseando uma de suas tiradas mais famosas: “O Brasil não é para principiantes”. O compositor de Águas de Março e Garota de Ipanema usava a expressão sempre que ocorria algo fora do senso comum ou para dizer que as coisas no Brasil são mais complexas, em todos os sentidos. Ou seja, não podem ser rotuladas de forma simplista, binária.

Assim é a nossa política, desde o Império, que manteve a nossa integridade territorial – e a escravidão – ao trocar as lutas fratricidas nas províncias pela política de conciliação. No Período Regencial, após a abdicação de Pedro I, em 1831, ocorreram a Cabanagem, no Grão-Pará entre 1835 e 1840, em razão da insatisfação popular; a Balaiada, no Maranhão entre 1838 e 1841, resultado de disputas políticas locais; a Sabinada, de 1837 a 1838, que desejava implantar uma república na Bahia; a Revolta dos Malês, uma rebelião de escravizados em Salvador, em 1835; e a Guerra dos Farrapos, revolta motivada por insatisfações da elite local com o governo, por questões políticas e econômicas, entre 1835 a 1845.


As crises e revoltas desestabilizaram a Regência, uma espécie de regime parlamentarista, o que provocou o Golpe da Maioridade, em 1940, quando P. Pedro II assumiu o governo com apenas 15 anos de idade. No começo de seu governo, Dom Pedro II poderia escolher seus ministros, porém, para se colocar acima das disputas, adotou um sistema peculiar: indicava o presidente do Conselho dos Ministros, encarregando-o de formar o governo e conciliar os interesses da situação e oposição.

Em 1853, essa aproximação levou à formação do “Ministério da Conciliação”, sob a liderança de Honório Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, com a presença simultânea de liberais e conservadores. Num discurso antológico, intitulado “A ponte de ouro”, o conselheiro Nabuco de Araújo, derrotado pelos liberais em Pernambuco, anunciou que permaneceria na oposição em sua província, mas apoiaria e participaria do gabinete de maioria liberal de Paraná, por lealdade ao Imperador.

Quem melhor retrata a política dessa época é Joaquim Nabuco, um monarquista abolicionista. Dedicada a seu pai, “Um estadista no Império” viria a ser uma espécie de livro de cabeceira do então presidente Fernando Henrique Cardoso, cuja leitura recomendava aos seus ministros ao administrar os conflitos de sua base política. O PSDB era minoritário no Congresso, em relação ao antigo PFL, seu aliado principal, e ao MDB, ainda que dividido. Historicamente, a política de conciliação no Brasil renasce das cinzas. Quando a radicalização política parece irreversível, busca-se uma saída por essa via, como na redemocratização do país, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985.

Pululam na política brasileira os leonardos, personagem de Manuel Antônio de Almeida, autor de memórias de um sargento de milícias, e macunaímas, de Mario de Andrade, personagens sínteses da nossa complexidade cultural. Ambos são arquétipos da sociedade brasileira que podem ser identificados com facilidade no nosso Congresso. A abordagem antropológica ajuda a compreensão de nossa realidade política na interpretação das estatísticas eleitorais, às vezes até explica melhor certos fenômenos, como a captura de grande parcela da população pela narrativa evangélica e o discurso da ordem.

 

Placas tectônicas

O que houve na sexta-feira, em São Paulo, tem muito a ver com o que se referia Tom Jobim. Entre sorrisos e tapinhas nas costas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (PR), o mais poderoso aliado do presidente Jair Bolsonaro, dividiram o palanque de lançamento do projeto de construção do túnel submerso de ligação entre Santos e Guarujá, uma parceria entre os governos federal e estadual e a iniciativa privada. Quando quer, Lula é um político pragmático e sedutor; gestor público competente, Tarcísio revelou-se um grande estrategista político.

No mesmo dia, Lula foi ao ato de refiliação de Marta Suplicy ao PT, uma articulação em favor da candidatura do deputado Guilherme Boulos (PSOL), de quem a ex-prefeita será vice. O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), o candidato de Tarcísio de Freitas, aliou-se ao ex-presidente Jair Bolsonaro para tentar se reeleger, embora o MDB participe do governo Lula. No mesmo palanque da Baixada Santista, estavam o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Márcio França, ambos ex-governadores de São Paulo, que apoiam a deputada Tabata Amaral (PSB) nas eleições da capital, uma espécie de terceira via na disputa entre Boulos e Nunes.

Lula afaga Tabata com elogios de quem aposta numa aliança no segundo turno. A jovem deputada, nascida e criada na periferia de São Paulo, campeoníssima em torneios juvenis de matemática, é uma astrofísica formada em Harvard. Muito sagaz, torna-se imprevisível nos debates. Tem um sorriso cativante, mas morde quando preciso. Tabata é namorada do prefeito do Recife, João Campos, bisneto de Miguel Arraes e principal aliado de Lula em Pernambuco.

Num país polarizado entre petistas e bolsonaristas, as eleições da capital paulista são uma demonstração da complexidade da nossa política. A ligação submarina entre Santos e Guarujá simboliza um outro tipo de política, em que a disputa eleitoral e a cooperação administrativa entre Lula e Tarcísio convivem em razão bem comum, mas pode ser também um movimento de placas tectônicas. Personagem oculto desse processo, o presidente do PSD, o ex-prefeito paulistano Gilberto Kassab, tem um pé em cada margem desse canal. Secretário de Governo e Relações Institucionais de Tarcísio, é o grande artífice dessa parceria.