“Os quatro relógios” é um dos mais de 80 livros da romancista britânica Agatha Christie, cujo verdadeiro nome era Dame Agatha Mary Clarissa Mallowan (1890- 1976), com mais de 4 bilhões de romances policiais vendidos. A história começa quando Colin Lamb, um agente do serviço secreto, visita o condomínio Wilbraham Crescent, na cidadezinha de Crowdean, e toma conhecimento de um estranho assassinato: um homem desconhecido fora encontrado apunhalado na sala da casa número 19, cuja proprietária é uma senhora cega, Mrs. Pebmarsh.
Na cena do crime são encontrados quatro relógios que marcam todos a mesma hora, 4h13, mas que não pertenciam à dona da casa. A estenógrafa Sheila Webb trabalhava para Pebmarsh, que não tinha solicitado nenhum serviço de estenografia. Diante do mistério, Lamb desafia seu amigo Hercule Poirot – o detetive de Assassinato do Expresso Oriente, seu personagem mais conhecido – a desvendar o crime sem sair da poltrona. Com perguntas objetivas, o famoso detetive soluciona o caso.
É mais ou menos o que está sendo feito pela Polícia Federal, sob a supervisão do ministro Alexandre de Moraes. Por ironia, a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro, com a suposta participação direta do ex-presidente Jair Bolsonaro, está sendo desnudada em razão de uma atitude “muquirana” (avara, sovina; de avarento, mão-fechada, unha-de-fome): a venda de um relógio, o que seria, digamos, uma banalidade, não se tratasse de uma joia avaliada em US$ 68 mil (R$ 388,6 mil, na cotação de ontem), recebida como presente de Estado da Arábia Saudita, que deveria ter sido incorporado ao Patrimônio da União.
Como os relógios de Agatha Christie, esse era o fio da meada para chegar aos principais responsáveis pelos atos de 8 de janeiro.
No dia 11 de outubro do ano passado, com base nessa informação, extraída de um celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, que havia sido apreendido durante a investigação da falsificação de um atestado de vacina do Sistema Único de Saúde (SUS) para o então presidente da República, a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão contra o general Mauro César Lourena Cid, pai do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL). O ex-advogado de Bolsonaro Frederick Wassef e o tenente do Exército Osmar Crivelatti, outro ex-ajudante de ordens do ex-presidente, também foram alvos da operação.
Tudo no celular
A PF apurou que o ex-ajudante de ordens da Presidência da República Mauro Cid teria vendido e depois recomprado o Rolex cravejado de brilhantes. Segundo as investigações, em 13 de junho de 2022, Mauro Cid viajou para a cidade de Willow Grove, nos Estados Unidos, onde vendeu o relógio. Esse dinheiro foi depositado na conta do pai de Cid. Nove meses depois, o advogado Frederick Wassef recuperou o relógio e o entregou novamente a Cid (filho), que retornou a Brasília e o transferiu para Osmar Crivelatti, também ex-ajudante de Bolsonaro. No dia 4 de abril de 2023, os advogados do ex-presidente Jair Bolsonaro depositaram o relógio, com outras joias, numa agência da Caixa, em Brasília.
Em razão do envolvimento de seu pai no episódio e por apelos da família, Mauro Cid decidiu fazer delação premiada e contar tudo que sabia. Seu celular é uma espécie de diário de bordo da conspiração para manter Bolsonaro no poder. A operação de ontem da Polícia Federal foi realizada com objetivo de comprovar os fatos relatados na sua delação premiada.
Apreendido na operação de busca e apreensão realizada na sede do PL, em Brasília, em tom de discurso oficial, documento apócrifo anuncia a decretação de um estado de sítio e da garantia da lei e da ordem no país. Estava na sala de Bolsonaro, que teve seu passaporte apreendido e foi proibido de sair do país. O presidente da legenda, Valdemar Costa Neto, foi preso em flagrante por porte de arma e de uma pepita de ouro sem registro.
Os generais Braga Netto, ex-chefe da Casa Civil e candidato a vice-presidente, e Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), estão entre os alvos da operação. Num dos diálogos registrados no celular de Mauro Cid, Braga Netto chama o então comandante do Exército, general Freire Gomes, de “cagão” e ordena que militantes radicais cerquem a casa do militar, por não ter aderido ao plano golpista.
Em outra gravação, o general Augusto Heleno, em julho de 2022, defende uma “virada de mesa, um soco na mesa” antes das eleições presidenciais. “Depois não vai ter VAR”, argumentava. Outra minuta golpista, que pedia a prisão dos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do STF, e do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, teria sido alterada pelo próprio Bolsonaro, que excluía Gilmar e Pacheco, mas manteve Moraes.
Todos estariam envolvidos diretamente nos atos do dia 8 de janeiro, quando milhares de manifestantes invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes (Palácio do Planalto, Congresso e Supremo). Segundo a PF, os investigados se uniram com objetivo de criar condições para uma intervenção militar que mantivesse Bolsonaro no poder.
Bom carnaval, volto na quinta-feira, 15 de fevereiro.