Recebi uma ligação de meu amigo Tibério Canuto, também jornalista, preocupado com a conjuntura. “Azedo, você não vai escrever sobre essa questão dos militares, o radicalismo dos que querem punição para que os generais que supostamente se omitiram é um grave equívoco”. Estava mesmo refletindo sob o tema, porque a famosa gravação da reunião de Bolsonaro com seus ministros, em julho de 2022, foi divulgada quando iniciava minha folga de carnaval e, na edição de ontem, resolvi tratar do enredo da Viradouro. Devia aos leitores do Correio Braziliense e do Estado de Minas uma coluna sobre aquela reunião, que continua repercutindo.

Ex-cabo conscrito do Exército, preso na década de setenta como dirigente da antiga Ação Popular Marxista-Leninista (APML), escaldado nos anos em que cumpriu pena como subversivo na Ala F da Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, Tibério fez autocrítica do seu esquerdismo e se tornou um reformista moderado, a la Partidão. Vou resumir suas ponderações:

“É preciso valorizar a postura dos militares que não aderiram ao golpe. Especialmente a resistência do então comandante do Exército, general Gomes Freire e o brigadeiro Batista Jr, comandante da Aeronáutica. O posicionamento do general Gomes Freire estava respaldado pela cadeia de comando. Mais importante: quem tinha poder para pôr tropa na rua não aderiu.

Não há golpe possível sem o apoio do Exército. Sem sua adesão, qualquer tentativa golpista está fadada a fracasso. Ou a ser abortada antes de sua execução. Esse foi um forte fator para o fracasso do putsch bolsonarista do 8 de janeiro. Pouco importa para uma justa apreciação dos militares que mantiveram uma postura legalista se foi ditada pela pressão dos Estados Unidos ou por convicção. O fato objetivo é que não aderiram.

Ora, se o ex-ministro da Defesa Braga Netto soltou seus cachorros para cima do general Gomes Freire, acusando-o de ser o responsável pela não adesão das Forças Armadas ao golpe e de ser um “cagão”, é óbvio que o então comandante do Exército foi uma pedra no caminho da intentona bolsonarista. O mesmo vale para a apreciação do comandante da Aeronáutica, xingado de traidor pelo principal braço executor da tentativa de golpe, Braga Netto.

A equação é simples. Se os golpistas xingam os generais legalistas de “melancia” – verde por fora e vermelho por dentro – compete aos democratas defender a postura dos militares com postos de comando que se mantiveram nos marcos da legalidade. E sobretudo preservar as Forças Armadas, como instituição.”

 


Erradicar o golpismo

Tibério lembra que, no excelente documentário “A democracia resiste”, de Júlia Dualib, disponível no Globo Play, o então ministro da Justiça Flávio Dino e seu secretário-executivo e interventor do governo Lula nas Forças de Segurança de Brasília, Ricardo Capelli, foram taxativos: “O golpe fracassou porque o Alto Comando das Forças Armadas foi legalista”.

Concordo em gênero, número e grau com Tibério. Há investigações da Polícia federal em curso, o inquérito corre no âmbito da Justiça civil, o que é uma inédita mudança de paradigma, se considerarmos que os investigados são oficiais de alta patente, alguns na ativa ainda. No período em que governou o país, Jair Bolsonaro aproveitou-se da condição de “comandante supremo” para dividir as Forças Armadas e seduzir seu alto comando, principalmente o do Exército. Prevaleceram os militares que não querem ver a instituição transformada em maiúsculo uma milícia.

Se tem uma coisa que sempre perturbou a vida democrática do país é a anarquia nas Forças Armadas, com recorrentes indisciplina e quebra de hierarquia nas crises políticas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva será sábio ao não se pronunciar sobre o que acontece no âmbito da caserna. Devem prevalecer o devido processo legal e o princípio da presunção da inocência, mesmo para Jair Bolsonaro, cujas intenções golpistas foram escancaradas na reunião ministerial. Para preservar a hierarquia e o respeito à Constituição, há o regimento disciplinar e o “almanaque” de promoções por antiguidade e merecimento.

Uma das causas do golpe militar de 1964 foi a quebra de hierarquia nas Forças Armadas, com a tentativa de articulação de um “dispositivo militar” que perpassava a cadeia de comando. Deu errado para o presidente João Goulart, Leonel Brizola, trabalhista, e Luís Carlos Prestes. Mas também deu errado para Juscelino Kubitscheck (PSD) e Carlos Lacerda (UDN), entre outros políticos, que apoiaram o golpe, apostar na destituição do presidente da República. Como disse o senador Ernâni do Amaral Peixoto, que era almirante, na sua autobiografia, o golpe de 1964 foi “a morte da política”.

Esquerda e direita no Brasil precisam fazer uma autocrítica definitiva em relação ao golpismo. É um tremendo equívoco defender um ajuste de contas com os militares que supostamente se omitiram, o silêncio deles valeu muito mais do que os palavrões de Bolsonaro e os comentários de Braga Netto, que fugiram aos padrões de camaradagem e lealdade que devem prevalecer nas casernas. O golpismo no Brasil, historicamente, não é monopólio de ninguém. É uma praga que precisa ser erradicada da política. O meio de fazê-lo é fortalecer as instituições do Estado democrático brasileiro e apartar as Forças Armadas das disputas pelo poder político. Quem quiser fazer política, que deixe o serviço ativo, definitivamente. Isso deveria valer também para policiais militares e civis. 

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