No final do século 19, os judeus eram pobres e sofriam constantes perseguições no Leste europeu, mas tinham uma vida bastante integrada à sociedade na Europa Ocidental, de cuja elite econômica e intelectual faziam parte. Muitos já haviam se tornado cristão novos, os “anusin”, convertidos à força ao cristianismo, como foram os “moçarabes” ao islamismo, na Península Ibérica, para fugir às perseguições. A origem da alheira, embutido português em formato de ferradura e cilíndrico, parecido com a linguiça de porco, foi a necessidade de os judeus dissimularem os seus hábitos alimentares no período da Inquisição.
Judeus que se instalaram no interior de Portugal depois de terem sido expulsos da Espanha fingiam consumir carne de porco (animal proibido na religião judaica) e, por isso, criariam um tipo de chouriço com vitela, coelho, peru, pato e massa de pão, que penduravam em janelas e quintais. Os cristãos gostaram da alheira e passaram a incluir a carne de porco.
A mais famosa é a de Mirandela, que leva cebola, frango, cabeça de porco, músculo bovino, paio, linguiça de pernil misturados com massa de pão italiano, com pimenta do reino, sal e canela. Pode ser grelhada ou assada, acompanhada de legumes, batata frita e ovos. Nos bares, é servida como aperitivo. Bacalhau desfiado com recheio de alheira e espinafre é prato popular.
Mas as alheiras não impediram que, na Páscoa de 1506, uma revolta do povo liderada por monges beneditinos levasse à morte 4 mil cristãos novos, no chamado Massacre de Lisboa. Acusados de provocar a seca e a peste, a matança começou numa missa no Convento de São Domingos. Muito menos a nova identidade impediu o pogrom: para protegê-los, a Coroa portuguesa havia autorizado que certos sobrenomes utilizados pela nobreza fossem também adotados por cristãos-novos, como Noronha, Meneses, Albuquerque, Almeira, Cunha, Pacheco, Vasconcelos, Melo, Silveira e Lima.
Marranos originários do Norte da África optaram por sobrenomes simbólicos na tradição portuguesa como Leão, Carneiro, Lobo, Raposo, Coelho, Pinheiro, Carvalho, Pereira e Oliveira. Outros preferiram os acidentes geográficos, como Serra, Monte, Rios e Valle, e cidades portuguesas: Miranda, Chaves, Bragança, Oliveira, Santarém e Castelo Branco. Ou mesmo aparência física: Moreno, Negro, Branco. Nos registros da Inquisição no Brasil, durante o período colonial, os sobrenomes mais citados atribuídos a judeus no país eram Rodrigues, Nunes, Henriques, Mendes, Correia, Lopes, Costa, Cardoso, Silva, Fonseca, Paredes, Álvares, Miranda, Fernandes, Azeredo, Valle, Barros, Ximenes e Furtado.
São sobrenomes que integram caldeirão étnico-cultural brasileiro, adotados por descendentes de índios e negros assimilados, e associado aos de imigrantes italianos, espanhóis, árabes e japoneses, entre outros, que conseguiram se traduzir e preservar plenamente sua identidade cultural, ao se integrar à sociedade brasileira. Entre os judeus, porém, há uma peculiaridade: são considerados apenas os filhos de mães judias, não importa a etnia do pai, embora possa haver “góis” convertidos ao judaísmo. Após longa preparação, a cerimônia de conversão é marcada pela aceitação de todos os mandamentos da Torá e das leis rabínicas, um banho ritual e a circuncisão.
Estado de Israel
Na Europa Ocidental, no século 19, principalmente na Alemanha e na França, os judeus gozavam de condições sociais mais elevadas e julgavam-se mais seguros e integrados. Até o advogado e jornalista húngaro Theodore Herzl, que era cristão novo, ser convidado para ser correspondente do jornal Neue Freie Press em Paris e cobrir o julgamento de Alfred Dreyfus, oficial judeu do Exército francês acusado de traição, injustamente condenado à prisão perpétua (1894), que provocou uma onda de antissemitismo. A farsa do julgamento provocara forte reação do escritor Émile Zola, numa carta aberta intitulada J'Accuse…!
Ao acompanhar o caso, Herzl constatou que a assimilação não resolvia o problema do antissemitismo. Em 1895, lançou sua obra “Der Judenstaat – Versuch Einer Modernen Lösung der Judenfrage” (“O Estado judeu – Uma solução moderna para a questão judaica”), que deu origem ao sionismo, em bases étnico-religiosas. Ao preconizar a reconstrução da soberania nacional dos judeus em um Estado próprio, o que só viria a ocorrer após o Holocausto, em 1945, discorreu sobre imigração, compra de terras, edificações, leis, idioma e inspirou a legislação de Israel.
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu escalou o mal-estar diplomático causado pela entrevista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Etiópia, na qual acusou o governo de Israel de genocídio e fez uma citação infeliz do Holocausto. Considerado “persona non grata” pelo governo de Israel, Lula pode ser criticado duramente pela associação que fez, mas sua condenação a Netanyahu, verdade seja dita, decorre da morte de milhares de mulheres e crianças em Gaza, ou seja, dos crimes de guerra cometidos por Israel.
Na esquerda brasileira, essa escalada verbal provocou uma perigosa onda antissionista. Seu risco é despertar o velho antissemitismo enrustido na nossa sociedade, desde o período da Inquisição católica. Sionista é quem defende a existência de Israel, de fascistas a socialistas. Não se deve generalizar.