O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma hoje o julgamento sobre a “descriminalização” da maconha para uso pessoal, sob forte pressão da bancada evangélica, que ontem se reuniu com o presidente da Corte, ministro Luiz Roberto Barroso. Pautado pela ex-presidente do STF Rosa Weber, a corte está a apenas um voto de decidir a questão. Ontem, Barroso afirmou que não haverá “descriminalização”, mas uma definição de critério objetivo e universal para distinguir os usuários dos traficantes.
A medida é importante para reduzir o encarceramento em massa e evitar prisões sem justificativa relevante de moradores da periferia, principalmente pessoas negras, que recebem tratamento diferente dos indivíduos brancos e de classe média flagrados portando drogas. Segundo o ministro Alexandre de Moraes, na ausência de uma definição legal da quantidade permitida por usuário, a polícia adota parâmetros arbitrariamente, por conta própria. Moradores da periferia com 10 gramas de maconha são presos enquanto nos bairros de classe média há casos de usuários liberados com mais de 100 gramas.
O julgamento da constitucionalidade do artigo 28 da Lei das Drogas (Lei 11.343/2006) se arrasta desde 2015, sob forte pressão dos setores conservadores do Congresso. Em agosto de 2023, o ministro André Mendonça, que é evangélico e foi indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, interrompeu o julgamento mais uma vez, com um pedido de vista, cujo prazo agora acabou. O processo conta com cinco votos favoráveis e um contrário, falta apenas um voto para atingir maioria favorável no plenário.
Já votaram os ministros Gilmar Mendes, para quem “a criminalização do consumo próprio fere a vida privada”; Edson Fachin, que deu voto favorável à descriminalização apenas do porte de maconha; Alexandre de Moraes, que propôs o limite de até 60 gramas para o porte de maconha de uso pessoal, com base em estudo da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ); e Luís Roberto Barroso, que propôs o limite de porte de 25 gramas de cannabis, critério adotado por Portugal.
A propósito, o filme “O invasor americano” (“Where to invade next”, em inglês), documentário de 2015, escrito e dirigido pelo polêmico cineasta Michael Moore, é uma sátira em estilo de reportagem sobre a forma como vários países lidam com problemas que não foram resolvidos. mas poderiam, pelos Estados Unidos. Moore ironiza o fracasso militar intervencionista dos EUA no Iraque e no Afeganistão e se voluntaria a invadir, ele mesmo, outros países, em busca de exemplos para serem “confiscados” pela sua nação: Itália (direitos trabalhistas), França (merenda escolar e educação sexual), Finlândia (educação básica), Tunísia (direito das mulheres), Eslovênia (ensino superior), Alemanha (relação vida/trabalho, queda do Muro de Berlim e “desnazificação”), Islândia (mulheres no poder).
Drogas e aborto
Em Portugal, os assuntos tratados por Moore foram a drogas de Portugal, o sistema de saúde universal e a abolição da pena de morte. Impressiona a entrevista com dois policiais sobre o tratamento dado aos usuários de drogas. More pergunta como procedem quando flagram um homem negro portando droga; os policiais respondem: nada, é um direito dele. Quando leva o assunto para a questão da saúde, os policiais explicam que o sistema de saúde pública português tem uma política para recuperar dependentes químicos.
Portugal e França, que incluiu o direito ao aborto na Constituição, são exemplos a serem estudados no campo das políticas contra a violência. O impacto da definição a ser adotada pelo Supremo será muito significativo: 31% dos processos por tráfico de drogas com apreensão de maconha poderiam ser reclassificados como porte pessoal e 27% dos condenados poderiam ter os julgamentos revistos. Até agora, Cristiano Zanin foi o único ministro a dar o primeiro voto contrário. Para ele, o porte e o uso pessoal devem continuar sendo crimes. Flávio Dino não participará da decisão, porque Rosa Weber já havia votado.
A decisão do Supremo é até tímida em relação às propostas mais avançadas sobre a política antidrogas, mas será um avanço significativo, se considerarmos a escala de seu impacto na população carcerária. A política atual funciona como uma rede de recrutamento e formação de “soldados” do tráfico nos presídios.
Outra questão polêmica, mais igualmente importante, é a criminalização do aborto, que atinge apenas as adolescentes em situação de risco, socorridas nas emergências do sistema de saúde devido à prática de provocar o aborto, e não as de classe média, que abortam em clínicas especializadas, cuja existência são toleradas. Estudos mostram que a legalização do aborto, em menos de uma geração, foi responsável pela redução da criminalidade em Nova York, muito mais do que a política de “tolerância zero”.
Ontem, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, disse que a criminalização do aborto em geral é uma “má política pública”. Para ele, de nada serve aprisionar mulheres que o praticam: “O aborto é uma coisa indesejável, que deve ser evitado. O papel do Estado é impedir que ele aconteça, na medida do possível, dando educação sexual, dando contraceptivos, amparando a mulher que deseje ter o filho, mas colocá-la na cadeia, se viveu esse infortúnio, não serve para absolutamente nada, é uma má política pública a criminalização”, disse Barroso.