Há que se ter certa cautela na avaliação das derrotas sofridas pelo governo na derrubada dos vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Congresso, na noite de terça-feira. Do ponto de vista do jogo democrático, faz parte de um cenário em que o governo luta pelo restabelecimento do “presidencialismo de coalizão”, enquanto os partidos do Centrão que integram a sua própria base parlamentar, com os petistas docemente constrangidos, pretendem impor um “semipresidencialismo” informal e irresponsável.
A diferença entre um conceito e outro não é o compartilhamento do governo com os aliados, o que já existe, mas o grau de compromisso de suas respectivas bancadas com os interesses da sociedade e a qualidade de investimentos políticas públicas. Uma análise atenta dos vetos derrubados e dos que foram mantidos mostra isso com clareza. As derrotas impostas ao governo foram mais simbólicas da agenda conservadora hegemônica no Congresso do que realmente um xeque-mate na governabilidade, para que o presidente Lula faça uma reforma ministerial. Não haverá reforma antes das eleições municipais.
O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (AP), resumiu a ópera: “Aqui vale a máxima do jogo é jogado e lambari é pescado. O governo reconhece a posição da maioria do Congresso e segue o jogo. Vamos para os próximos temas. Celebramos e agradecemos ao Congresso a manutenção dos vetos da LDO e a percepção de ter mantido outros cinco vetos, como a Lei Orçamentária e outros pontos que implicariam em aumento de gastos, com impacto fiscal. Reconhecemos o resultado onde fomos derrotados", disse. Os dois temas de mais repercussão política foram a taxação de compras on line no exterior de até US$ 50, o equivalente a R$ 260, e as chamadas “saidinhas”.
A rigor, apesar de ter afirmado que era contra porque considerava uma injustiça cobrar impostos sobre pequenas compras que beneficiam os consumidores de baixa renda, Lula ganhou de dois lados: jogou para a arquibancada, ao se posicionar contra o imposto, uma posição simpática à sua base eleitoral; e o governo federal é que vai faturar com a cobrança de 20% sobre o valor dessas compras, como, aliás, desejava o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que se fez de morto na votação. Há uma certa “dialética” no resultado dessa votação.
No caso da “saidinha”, o veto de Lula se aplicava apenas aos presos que estão em regime semiaberto, ou seja, que trabalham ou estudam durante o dia e dormem na cadeia. Esses presos costumam ser liberados no Natal e em outras ocasiões para ficar com suas famílias. A taxa de evasão e prática de crimes por esses presos, que estão em regime semiaberto por progressão de pena e/ou bom comportamento, é baixíssima.
Randolfe ironizou a decisão, comentando que atingirá também os condenados pela tentativa de golpe de 8 de janeiro, mas não é bem assim. Todos os presos já condenados têm direitos adquiridos com base no Código Penal. A lei não pode ter efeito retroativo. Qualquer advogado criminalista que recorrer aos tribunais terá ganho de causa. Até o fim de abril, no caso dos vândalos que depredaram a Praça dos Três Poderes, eram 88 presos por esses ataques e outros 1.557 cumpriam pena em regime semiaberto ou aberto e foram submetidos a medidas como uso de tornozeleira e proibidos de deixar o país.
Fake News
No mérito, a derrota mais séria foi o Congresso manter a decisão de Jair Bolsonaro, que vetou, em 2022, a criminalização das fake news eleitorais, como violação das regras democráticas. Na Câmara, 317 deputados votaram para manter o veto do ex-presidente e apenas 139 foram contra, dos quais 115 votos vieram de legendas de esquerda: PT (65), PDT (14), PSol (13), PSB (11), PCdoB (7) e PV (5). Dos 317 favoráveis a não punir fake news, 191 foram dados pelos cinco partidos do Centrão que integra a base de apoio ao Planalto: União (51), PP (42), Republicanos (40), PSD (37) e MDB (21). Como o veto foi mantido pelos deputados, não foi necessário sequer submeter a matéria à apreciação dos senadores.
Randolfe jogou a toalha quanto à agenda conservadora do Congresso: “Conseguimos adiar duas vezes essas votações, mas nada adiantou. E nada adiantaria mesmo que adiássemos dez vezes. O placar seria sempre esse. Precisamos reconhecer essas derrotas”, disse. Segundo o líder do governo no Congresso, houve uma reunião para avaliar os resultados da noite de terça-feira entre o presidente Lula e seus articuladores políticos: o ministro Alexandre Padilha e os líderes no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), e na Câmara, José Guimarães (PT-CE), além do próprio Randolfe.
Ficou decidido que esse “núcleo político” se reunirá toda segunda-feira, com a participação eventual de ministros envolvidos com a agenda do Congresso. Uma velha raposa do Senado aposta que na terceira semana Lula já não participará da reunião. “Não adiantará nada, são eles com eles, o que vai decidir os rumos do Congresso são as conversas de Lula com Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, e Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara. Eles é que mandaram recado”.