"Estamos vivendo um momento darwinista da política brasileira, no qual os bons rapazes ainda estão perdendo" -  (crédito: Mário Agra/Câmara dos Deputados)

"Estamos vivendo um momento darwinista da política brasileira, no qual os bons rapazes ainda estão perdendo"

crédito: Mário Agra/Câmara dos Deputados

Um piripaque da deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), em plena sessão da Câmara – ela já passa bem, felizmente –, na quinta-feira passada, impediu que fosse aprovada a toque de caixa uma proposta que proíbe a delação premiada de quem esteja preso, ao provocar a suspensão dos trabalhos. O projeto, originalmente de autoria do ex-deputado dormia nos escaninhos do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que resolveu pô-lo em votação para agradar os deputados da oposição que também se articulam para aprovar uma anistia para os envolvidos na tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro.

 

A delação premiada consiste em o acusado ou o indiciado dar detalhes sobre o crime cometido em troca de benefícios, como a progressão do regime ou a redução da pena. No momento, quem está em evidência com relação ao benefício é o ex-policial militar Ronnie Lessa, assassino confesso da vereadora carioca Marielle Franco e do seu assessor Anderson Gomes, em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro.

 

Lessa fazia parte do Escritório do Crime, um grupo de extermínio ligado a milícias e banqueiros do jogo do bicho. O deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), seu irmão Domingos Brazão, conselheiro do tribunal de Contas do Rio de Janeiro, e o delegado da Polícia Civil fluminense Rivaldo Barbosa são acusados por Lessa de serem os mandantes do crime.

 

 

O recurso à delação premiada foi adotado também pelo coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Deputados do Centrão fazem um movimento de reaproximação com o ex-presidente Jair Bolsonaro, em razão das eleições municipais e da sucessão de Lira no comando da Câmara. O projeto poderia beneficiar a extrema-direita, que tem sido investigada por atos golpistas, por exemplo.

 

O texto, porém, não deixa claro se a proibição será retroativa, ou seja, se delações premiadas já validadas seriam anuladas, numa espécie de anistia disfarçada. A delação de Mauro Cid é a peça-chave para esclarecer a participação de Bolsonaro e os generais de seu estado maior na tentativa de golpe de 8 de janeiro.

 

A proposta, agora apoiada pelo Centrão, foi apresentada em 2016 pelo advogado e então deputado do PT Wadih Damous, quando a então presidente Dilma Rousseff (PT) enfrentava um processo de impeachment. À época, seu governo lidava com o avanço da Operação Lava Jato; logo depois, o senador ex-senador Delcídio Amaral faria delação premiada, na qual denunciou malfeitos praticados no âmbito do Palácio do Planalto, do Senado Federal, da Câmara, do Ministério de Minas e Energia e da Petrobras.

 

Pelo projeto, a delação premiada só poderá ser validada pela Justiça caso o acusado ou o indiciado esteja respondendo em liberdade a ações em seu desfavor. Ao texto de Wadih Damous, apresentado em 2016, foram apensadas outras sete propostas que tratam da proibição da delação premiada de presos. A mais recente delas foi protocolada no ano passado, por Luciano Amaral. Talvez volte à pauta na próxima semana.


Trouxas e trapaceiros

 

Segundo uma velha afirmação do beisebol, muito popular nos Estados Unidos e em Cuba, “os bons rapazes terminam em último”. Na política, também é muito comum esse raciocínio. O ardil, a dissimulação, a esperteza e a falta de escrúpulos parecem ser a regra do jogo predominante. Para muitos, “os fins justificam os meios”, embora essa forma de ver a política – e Maquiavel, de forma distorcida – seja responsável por quase tudo que deu errado na política, inclusive os malfeitos. No vale tudo da política, quase sempre quem perde é a sociedade.

 

Mas voltemos aos bons rapazes. Segundo o biólogo Richard Dawkins, o ser humano é um grande arranjo biológico, uma espécie de máquina de sobrevivência de um gene egoísta reprodutor da espécie. Para isso, porém, também precisa ser altruísta, cooperar com os demais integrantes da espécie para não entrar em extinção. É aí que os bons rapazes podem acabar em primeiro. Para explicar o raciocínio, Dawkins faz uma analogia com os pássaros de uma mesma espécie, mas com comportamentos distintos: os trapaceiros, os trouxas e os rancorosos, todos em luta com piolhos alojados na cabeça, que poderiam exterminar a espécie.

 

Caso existissem somente trapaceiros e os trouxas, a espécie seria extinta, porque somente o segundo cataria os piolhos alheios, o que não seria suficiente para manter o equilíbrio ecológico. Os trapaceiros não catam piolho de ninguém, nem podem removê-los da própria cabeça; com a redução da população de trouxas, todos acabariam extintos.

 

Quando entram em cena os rancorosos, a situação se modifica. São pássaros que ajudam uns aos outros de maneira mais ou menos altruísta, mas que se recusavam a colaborar com os indivíduos que se recusaram a ajudá-los. Por essa razão, os rancorosos conseguem transmitir mais genes às gerações seguintes do que os trouxas (que ajudavam os indivíduos indiscriminadamente e por isso eram explorados) e também que os trapaceiros (que, implacáveis, tentavam explorar todo mundo e acabaram por se anular uns aos outros).

 

Com o chamado altruísmo recíproco, a população de trouxas diminui e os trapaceiros acabam com a sobrevivência ameaçada pelo isolamento. Estamos vivendo um momento darwinista da política brasileira, no qual os bons rapazes ainda estão perdendo.