Quando parecia que o Supremo Tribunal Federal (STF) caminhava para descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal, pois o julgamento estava 5 a 3, o ministro Dias Toffoli embananou a decisão da corte, com seu voto para manter o porte de drogas como um crime, depois de uma longa intervenção, que parecia caminhar na direção contrária. O julgamento agora está 5 a 4. Ainda não votaram os ministros Luiz Fux e Cármem Lúcia, que decidirão a questão.
Pelo voto de Toffoli, as punições ao usuário continuam valendo e permanecem socioeducativas, mas não há prisão. Entretanto, basta mais um voto para formar maioria e transformar o ato em ilícito administrativo, com sanções mais leves e na esfera administrativa, não-penal. O julgamento foi provocado pela Defensoria Pública de São Paulo, que recorreu da condenação de um jovem que portava 2,5 gramas de maconha. Caso prevaleça a tese que considera o porte de drogas um ilícito administrativo, a prestação de serviços, por exemplo, deve cair. O ministro Flávio Dino não vota porque Rosa Weber já votou neste julgamento, antes de se aposentar.
Hoje, se a polícia e a Justiça considerarem alguém usuário, ele deverá, por exemplo, comparecer a cursos e prestar serviços à comunidade. Entretanto, a decisão é subjetiva: a Lei de Drogas em vigor não faz essa distinção entre usuário e traficante. A tendência da corte é fixar um critério quantitativo. Até o momento, a proposta com mais adesões (quatro votos) estabelece que as pessoas flagradas com até 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas sejam presumidas como usuárias (voto de Alexandre de Moraes, com apoio de Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber).
Entretanto, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou um projeto de criminaliza tanto o porte de maconha como o uso medicinal da cannabis, à qual recorrem portadores de doenças raras e pacientes terminais em cuidados paliativos. Cristiano Zanin e Nunes Marques propuseram como critério 25 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas para diferenciar uso de tráfico. Já o ministro André Mendonça sugeriu 10 gramas, até o Congresso decidir a questão, em 180 dias. Edson Fachin propôs que a distinção entre traficante usuário seja tomada pelo Congresso.
Na abertura da sessão de ontem, o presidente do Supremo, Luiz Roberto Barroso, fez questão de esclarecer que o STF considera, “tal como a legislação em vigor”, que o porte e comsumo pessoal de drogas são atos ilícitos. Nesse sentido, negou categoricamente que a corte esteja legalizando a droga. “O Supremo mantém o consumo como um comportamento ilícito. E todos nós aqui educamos nossas famílias numa cultura para o não consumo de drogas.”
População carcerária
O julgamento trata de duas questões: se o porte de maconha para consumo pessoal deve ser tratado como ato ilícito de natureza penal ou ato ilícito de natureza administrativa; e qual a quantidade que o diferencia de tráfico. “A razão para fazermos isso é a necessidade de criarmos um critério objetivo, porque na falta de critério, a mesma quantidade de drogas nos bairros mais elegantes das cidades brasileiras é tratada como consumo e na periferia é tratada como tráfico”, disse Barroso.
O julgamento é um dos mais longos da história recente do Supremo. Começou em 2015 e foi interrompido quatro vezes, por pedidos de vista, a última pelo ministro Toffoli. Durante os debates, temas importantes relacionados à questão das drogas foram abordados. Toffoli reconheceu que a população carcerária cresceu exponencialmente (de 300 mil para 700 mil presos, em números redondos).
O ministro Flávio Dino associou esse crescimento ao fortalecimento das organizações criminosas, especialmente o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), que se internacionalizaram. Moraes destacou que transferência de presos de um estado para o outro possibilitou o fortalecimento das quadrilhas. O ministro Gilmar Mendes lembrou a experiência de Portugal, que tem uma das mais modernas políticas antidrogas da Europa.
Até abril de 1999, o consumo em Portugal crescia no mesmo ritmo das doenças infecciosas e da superlotação das prisões. Há 20 anos, após longos debates com a sociedade civil e no Parlamento, decidiu-se descriminalizar o consumo daqueles que portassem no máximo 10 doses de uma determinada substância ilícita. Mas o que fez diferença foi a mudança em relação aos viciados: deixaram de ser tratados como criminosos, receberam programas de cuidados, de substituição de heroína por metadona, foram incluídos no sistema de saúde pública para tratamento.
Apesar de o consumo global de drogas não ter diminuído, o de heroína e cocaína, duas das mais problemáticas, que afetava 1% da população portuguesa, caiu para 0,3%. As contaminações por HIV entre os consumidores caíram pela metade e a população carcerária por motivos relacionados às drogas caiu de 75% a 45%, segundo dados da Agência Piaget para o Desenvolvimento (Apdes). Em Portugal, o consenso manteve a lei; nem a direita nem a esquerda, no poder, mexeram com isso.