Kamala Harris tem grande chance de virar o jogo sobre Donald Trump -  (crédito: JIM WATSON/AFP)

Kamala Harris tem grande chance de virar o jogo sobre Donald Trump

crédito: JIM WATSON/AFP


No xadrez, o roque é a única jogada em que duas peças se movem simultaneamente. É uma manobra para proteger o rei, movimentando a torre, e abrir novas possibilidades ofensivas. As regras são as seguintes: o jogador só pode rocar se não tiver movido seu rei e sua torre (no lado onde deseja rocar); nenhuma peça pode ficar entre o seu rei e a torre do lado onde deseja fazer o roque; não se pode rocar quando se está em xeque ou através dele.



No xadrez da política americana, as regras são outras. A troca de do presidente Joe Biden (o rei) pela sua vice, Kamala Harris (a rainha), como provável candidata do Partido Democrata, tirou a legenda de um iminente xeque-mate e possibilitou a retomada da iniciativa política, depois de uma crise dramática. Nas últimas semanas, o atual ocupante da Casa Branca desnudara sua incapacidade física e mental para enfrentar Donald Trump, ainda mais depois que o candidato republicano sobreviveu a um atentado em plena campanha e, na sequência imediata, escolheu um jovem candidato a vice, o senador J.D Vance, de 39 anos.



Pressionado pelo establishment norte-americano e as principais lideranças democratas, enquanto Trump esbanjava vitalidade, Biden convalescia de uma nova COVID-19, sob fortes pressões para desistir da reeleição. Jogou a toalha no domingo e anunciou Kamala como sua candidata a vice no mesmo dia. Recebeu apoio imediato de Bill e Hillary Clinton e de Nancy Pelosi, a poderosa presidente da Câmara de Deputados, mas ainda falta o apoio formal de Barack Obama e sua esposa, a carismática Michelle Obama, que não pretende ser candidata. Hoje, porém, bate Trump nas pesquisas com 10 pontos de vantagem. Entretanto, a vice-presidente tem precedência na indicação e os democratas não têm tempo para uma disputa interna com realização de novas primárias, pois as eleições estão marcadas para 5 de novembro e Trump é favorito. Além disso, herda o cofre eleitoral de Biden já na largada.

 



Kamala protagonizará um choque dramático entre dois Estados Unidos, o supremacista branco e o multiétnico, o conservador e o progressista, o provinciano e o cosmopolita, o globalista e o isolacionista, o ambientalista e o negacionista. Aprofunda-se a divisão do país, que remonta à Guerra da Secessão entre o Sul confederado e a União. Trump estava com o discurso na ponta da língua, tripudiando de Biden, por causa de sua fragilidade, embora seu governo tenha indicadores muito positivos. Perdeu o discurso, terá que enfrentar uma mulher negra e combativa, com as bandeiras da democracia e da ordem nas mãos, que exercerá um forte apelos identitários, sem a necessidade da retórica “identitarista”, como fizera Barack Obama para se eleger presidente dos EUA.

 

Força da natureza



Nunca uma mulher governou os Estados Unidos, nunca uma negra foi candidata do Partido Democrata. Kamala é a reencarnação política de Shirley Anita St. Hill Chisholm (1924-2005), educadora e escritora, a primeira mulher negra a ser eleita ao Congresso dos Estados Unidos, em 1968. Exerceu sete mandatos, até 1983. Em 1972, tornou-se a primeira mulher negra a postular a presidência dos Estados Unidos, e a primeira mulher a concorrer ao cargo no Partido Democrata. Shirley enfrentou dificuldades de organização e financiamento, sua campanha arrecadou apenas 300 mil dólares. Fez tudo para ser considerada candidata de verdade, mas foi descartada pelos democratas e ignorada até pela maioria dos homens negros. Recebeu apenas 3,5% dos votos nas primárias. Com 1.728 delegados, o senador George McGovern venceu a convenção e disputou a Presidência, sendo massacrado eleitoralmente por Richard Nixon, que disputava a reeleição. O filme “Shirley para presidente” (Netflix) conta essa história.



Kamala é outra força da natureza, mas num contexto menos desfavorável. Inverte a equação da idade na disputa americana e confronta tudo o que existe de reacionário na campanha de Trump, o que o obrigará a mudar seu discurso, embora a lógica seja colar em Kamala todas as críticas à gestão de Biden. Uma das acusações diretas do republicano contra a vice-presidente é de ter acobertado a condição física de Biden. Ex-procuradora, Kamala não é um ícone progressista do Partido Democrata, seu nome historicamente está associado ao direito e à justiça, mas será alvejada por sua atuação na crise de imigração na fronteira com o México. A defesa do direito ao aborto também será usada contra ela, pois Kamala apontou os danos causados pela proibição do aborto e pediu ao Congresso a restauração das proteções do caso Roe v. Wade, que garantiam o direito ao aborto nos EUA, até serem anuladas pela Suprema Corte em 2022.



Entretanto, uma pesquisa realizada em abril pelo Pew Research Center mostrou que 63% dos adultos entrevistados disseram que o aborto deveria ser legal no país em todos ou na maioria dos casos, enquanto 36% afirmaram que deveria ser ilegal em todos ou na maioria dos casos. Entre as pessoas que se declaram não afiliadas a nenhuma religião, os favoráveis ao aborto na maior parte dos casos chegam a 86%. Ao mesmo tempo, 73% dos evangélicos protestantes brancos acreditam que o aborto deveria ser ilegal em todos ou na maioria dos casos. Kamala Harris tem 59 anos, um forte contraste com Trump, e conhece bem os meandros da política norte-americana. Recebeu o apoio de Gretchen Whitmer, governadora de Michigan, e de Gavin Newsom, da Califórnia, nomes cotados para substituiu Biden até ele anunciar seu apoio a Kamala. Em boa forma e enérgica, ainda pode virar o jogo.