Há poucos dias minha mãe comemorou 96 anos. Está lúcida, caminha por conta própria, às vezes se ampara em uma simples bengala por precaução. Tem muito medo de cair, apesar de que não dispensar um chinelinho e tapetinhos no banheiro, o que gera discussões constantes em casa. Usa aparelho auditivo, ainda que ouça razoavelmente bem sem ele. Remédios toma quatro, sendo dois complexos vitamínicos.


Dorme cedo, acorda tarde sob o argumento de que tem poucas tarefas a cumprir e horários a seguir, então “para que pressa?”. Acostumada a dormir tarde e a acordar cedo a vida inteira, a correr para dar conta do serviço de casa, as demandas naturais de três filhos sem muita ajuda externa para atenuar a pesada rotina de dona de casa, custou a se adaptar à nova realidade: ser servida.


Costumo lhe dizer que já passou da hora de curtir aquilo que ela sempre proporcionou aos filhos: sentar-se à mesa e comer sem se preocupar em preparar nada, sequer com o que será servido. Depois, nada melhor que elogiar os pratos, agradecer, se levantar e fazer a sesta. Já lavou vasilha demais, pendurou muita roupa no varal, se preocupou em não perder uma aula sequer, mesmo que não fosse ela a se sentar na carteira da escola.


A maior parte da existência viveu no aperto. Longas filas no antigo INPS até conseguir vaga para consulta de alguém da família, madrugando para chegar a tempo no Hospital da Baleia, que nos parecia bem mais longe do que de fato é. O passar do tempo tem essa arte, diminuir as distâncias até que as façam parecer “logo ali”.


Às vezes nos lembramos da época em que apenas uma vizinha tinha telefone. Quando ela batia na nossa porta, gelávamos. Era portadora de más notícias. Meu pai tinha uma caminhonete que, quando faltava água no bairro, servia para buscar tambores cheios do lado da cidade que tinha mais sorte. Era nossa hora de socorrer a tal vizinha.


Tenho vários amigos cujas mães já passaram dos 90 e a maioria está nessas mesmas condições. “Minha mãe, de 98 anos, nada três dias por semana e faz pilates outros dois”. “A minha, depois que ficou viúva, não quer viajar mais, mas se diverte fazendo as próprias roupas, apesar de sair raramente e teimar em ficar de moletom dia e noite”. É para lá que estou caminhando, espero, poder levar a vida com leveza até que as coisas se invertam e eu seja levada.

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