Um dia na roça
"Diante de tão grande equívoco, o menino saiu sobressaltado por entre as pernas dos adultos"
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É encantadora a capacidade das crianças de serem sinceras. Lembro-me do que aconteceu com um amiguinho meu quando ele teve a audácia de desmentir o anfitrião da casa onde sua família estava fazendo uma visita. Eles moravam na roça e cada vez em que iam à cidade era um acontecimento a ser celebrado e muito bem aproveitado.
Os adultos se sentavam à mesa para comer quitandas. Bolos, broas e pães, como de costume. Acompanhavam o café feito na hora no coador de pano sobre o bule esmaltado. Às crianças ficava reservado todo o terreiro, onde podiam correr e se esbaldar sob o olhar nada atento dos cachorros, que estavam mais preocupados em puxar um cochilo do que em tomar conta da vida alheia.
Num desses passeios, meu amiguinho, admirado com a beleza da cozinha que acabara de conhecer, preferiu ficar por ali mesmo, ao pé do armário. Não resistiu à curiosidade e abriu sorrateiramente as gavetas e acabou encontrando um pote de doce de leite “pedindo para ser comido”. Ele não pensou duas vezes e se apropriou da guloseima. Logo localizou uma colher e se ajeitou debaixo da mesa onde os adultos estavam reunidos. Entretidos com a necessidade de colocar muita conversa em dia, ninguém reparou seus movimentos. Não haveria de ter problema, pensou o menino, porque ninguém fazia conta de doce na roça. Era algo que qualquer um podia comer a qualquer hora.
Até que em determinada hora ouviu sua mãe dizer que adorava o doce de leite feito pela anfitriã, que rapidamente agradeceu o elogio e lamentou não ter nem um pouquinho para oferecer naquele momento. Diante de tão grande equívoco, o menino saiu sobressaltado por entre as pernas dos adultos e as pontas da toalha de mesa, com os lábios e as mãos besuntados de doce. Precisava esclarecer que tinha sim e em quantidade suficiente para todos comerem com direito a repetir “porque estava bom demais”.
É fácil imaginar o que acabou acontecendo com o menino, além da falta de graça que tomou conta de todos. Naquela época era prática castigar fisicamente as crianças “mal-educadas” e foram muitas as surras que ele levou até que “virou gente”. Hoje tudo se resume a lembranças impressas “no corpo e na alma”. Quero crer que as convenções sociais tenham evoluído a ponto de nos permitir poder negar fazer o gosto tanto de adultos quanto de crianças, mesmo sob o risco de sermos considerados grosseiros.