Tempos fáceis, gente fraca. Uma aberração sem limites impulsiona a desumanidade. A realidade fraturada pela desinformação automatizada esfarelou o discernimento humano e deu ao falso o nome de inteligência artificial. O mundo verdadeiro que valia a pena viver está morrendo.
O ser humano virou mendigo dentro dessa loja de brinquedos que é o computador ou celular. Sem sonho próprio, sem dar chance ao esquecimento, é intolerável viver. Nenhuma invenção espalhou no universo tanta paixão ruim e quanto mais evolui mais ataca e ameaça a todos com ficção, acúmulo, tédio e exacerbação. Tudo que pode ser contingente, mas se torna imprescindível, enlouquece. Como ato de fé o online é pagão.
De tudo que ocorre sempre acabamos sabendo a verdade. As coisas realmente importantes se revelam sem precisar de tela ou teclado. O destino quando bate à porta só deve entrar se você quiser. A alta tecnologia de comunicação se apropriou de todas as mídias e impôs um comício mundial de destruição metódica da liberdade de pensamento. A amargura e o sofrimento aumentaram desde que esta delegacia de costumes de impregnação e demolição de sentimentos e ideias próprias avançou. Quem é viciado nele sabe que no celular há um gatilho semelhante ao que existe dentro de uma bomba um minuto antes da explosão.
Nem todos os usuários praticam o cinismo da liberdade que os meios tecnológicos impulsionaram. Mas o retorno do indivíduo ao seu lugar de sujeito é cada vez mais distante. Afinal, ter tudo, não pagar nada ou pouco, ajuda no culto da transgressão sem perigo, na prática do preconceito recreativo, nos coquetéis de auto-ajuda, na moda de anunciar sem realizar. Os personagens de maior prestígio nas redes sociais são semi-habilitados em virtudes civis e mestres em sloganização. Faladores compulsivos impuseram tal fluxo de tagarelice na versão das coisas que o debate de TV virou um sarau descuidado do fato. Sem espaço para gente inspirada e iluminada não há mais o contra-poder-crítico em nada.
Estranho mundo em que o moderno é uma mistura de apressado-preguiça, que se deixa apropriar por aparelhos e ser subtraído da própria vontade. Destrutivo, depressivo, deprimente, reles e veloz que toca tudo com a ponta dos dedos com outro fim que não o eterno. Não tem nada parecido com o “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, ou o “1984”, de George Orwell, duas ficções ingênuas sobre o autoritarismo. São romances da época em que o ditador via o mundo e era derrotado, hoje, ditador é o aplicativo que diz o que ver e nos derrota. Uma renúncia à sensibilidade e à intimidade, forma de abandono e desmoralização do esforço humano, destino que entregou sua alma ao aparelho.
Sensibilidade e capacidade de pensar eram as maiores virtudes para compreender as coisas. Até que frente a uma tela a pessoa virou uma árvore sem folha. Escravizada a expressão da vida, todos estão dispensados de comparecer diante de si mesmos como donos das sensações que têm.
Coisas excessivas, pessoas que gostam de aparecer excessivamente pularam na frente das telas tornando trabalhoso ser patinho feio, cisne negro, e decidir não tomar conhecimento de redes sociais e desconhecer aplicativos. Contrapelo, contra fogo, conectado, viralizado, quem é o alienado? A moderação da liberdade e das manias é um caminho para a felicidade, a boa vida que considera a razão um dos mais elevados valores para viver em sociedade. Linhas móveis conectadas já são quase três vezes a população do planeta. É desmedidamente um calabouço e um moinho de decepções extraordinárias. As sensações do tato, gosto, olfato, da boa companhia e boa conversa são sepultadas pelo suposto e o pressuposto obrigatório de conferir e compartilhar o tempo todo a visão e o ouvido com vídeos e áudios por onde trafegam ideias de fora de cada um.
A alta tecnologia ajudou a interromper a divisão virtuosa do mundo entre democracias e autocracias. Tudo vira o que puder. O mundo atual, desinteressado prático das consequências do que faz, acumula solidão e tenta atenuar o egoísmo compartilhando propaganda de aplicativo. Olhando bem, o mundo High Tech é um fracasso. É de certa forma responsável pelo calor extremo, temporais, a indiferença aos refugos humanos que vivem nas ruas, novas formas de violência, depressão individual, suicídio dos jovens, queda na qualidade da educação, destrutividade sem precedentes dentro das nações.
Criadas por gente fria de gelo, o lado malévolo das redes de comunicação não esconde mais a que veio: se apropriar impunemente da pessoa e dela subtrair o desejo. Fora de nós não há salvação. Feliz 2024 é ver a humanidade caminhar com um melhor espírito de utilidade.