A inteligência artificial (IA) saiu dos laboratórios de empresas e universidades e começou a modificar a forma como trabalham e vivem partes significativas da população. A invenção veio antes da educação. É mais uma das mudanças tecnológicas que chegam ao dia a dia sem uma cultura e um arcabouço legal que defina as regras do jogo para sua produção e utilização. É assim mesmo, muitas vezes resta às leis correr atrás da inventividade humana para podar nela seus eventuais abusos.
A vida baseada em dados quer se tornar uma lei rígida do mundo nascido da internet. Do ponto de vista humano, a percepção negativa da realidade aumentou e sobre a felicidade não há algoritmo capaz de ler a alma. Presa a dados, a pessoa vive na inércia ou na prontidão, um caminho para a insatisfação permanente.
Um sociólogo da prestigiada universidade britânica London School of Economics (LSE) publicou neste ano, em parceria, um livro com uma bem-acabada e provocativa análise panorâmica da questão que denominaram no título da obra como “Furto de dados” na escala internacional.
Lançado meses atrás pela editora da Universidade de Chicago, “Data grab”, de Nick Couldry, da LSE, com Ulises Mejias, da Universidade do Estado de Nova Iorque (Suny), é mais uma das bem-refletidas análises sobre os meandros desse capitalismo emergente que extrai o máximo da junção entre dois movimentos expansionistas: um irrefreado aumento da capacidade computacional acoplado a uma cada vez mais granular captura de dados sobre a vida humana e natural. No caso do livro deles, o foco está no viés neocolonial que as grandes corporações de tecnologia da informação – as chamadas big techs – têm.
Empresas de IA almejam ficar a cargo de veículos autônomos a decisões judiciais e administrativas. Não é inteligente que o Brasil se abstenha de bem conduzir esse processo – no mínimo em suas terras –, beneficiando preferencialmente empresas e trabalhadores locais.
Por mais que a história atual seja um tanto mais complicada do que no tempo das sesmarias, o conceito de “colonialismo digital” elaborado no livro de Couldry e Mejias é relevante para que se perceba o problema e se construam alternativas a fim de evitar a permanência da população – sobretudo as dos países periféricos – na posição de otário.
As grandes corporações de tecnologia da informação estão explorando dados pessoais e georreferenciados de maneira semelhante à exploração de pessoas, recursos e territórios durante a era colonial. Nesse contexto, essas empresas coletam e utilizam informações pessoais e nacionais para gerar lucro, consolidando poder e riqueza, muitas vezes à custa da privacidade e da autonomia dos indivíduos. Assim como no colonialismo histórico, esse processo amplia desigualdades e cria novas formas de dominação e controle sobre as populações.
Os ajustes legais, conectados a políticas industriais para os setores com claro potencial de uso de IA, precisam ser feitos o quanto antes. Nesse caso, quanto mais tempo passa, mais difícil ficará reverter a tendência de subdesenvolvimento. Em todos os países circunstancialmente periféricos existe e existirá algum conflito pela redistribuição dos lucros exorbitantes entre os empreendedores locais e os interesses de negócios internacionais. Estranho é a falta de interesse de empreendedores locais.
Todavia, o Estado não pode se resignar diante de tal falta, pois é seu papel viabilizar a melhor alternativa nacional possível com vistas a ganhos de longo prazo para uma maioria. Afinal, países desenvolvidos ainda seriam uma roça arcaica, ou talvez nem fossem um país, se as classes médias e populares, por meio do Estado, não tivessem viabilizado todas as principais atividades produtivas e exportadoras nacionais, nos momentos em que os detentores de capital locais não tiveram capacidade ou disposição para investir e impulsionar determinados setores-chave. O Brasil não é, nem será diferente.
Pois bem, IA e seu instinto selvagem, veio também cheia de más intenções nascidas em laboratórios de universidades e empresas ambiciosas dispostas a ser um setor-chave da atividade econômica e da circulação social por meio de diferentes negócios e aplicações.
É normal e esperado que surjam conflitos entre países na defesa de suas empresas, pois estas geram lucros e poderes extraordinários. A competição por mercados e recursos frequentemente leva a tensões geopolíticas, com os Estados buscando proteger e promover os interesses econômicos de suas corporações nacionais, sobretudo em disputas por fronteiras tecnológicas e de acumulação. Contudo, mais extraordinário ainda seria tapar os olhos, fazer pouco caso e perder esse trem.