Esta semana se reuniu em Nova York a nata do sistema financeiro do mundo. Banqueiros, financistas e as áreas econômicas de governos e grandes empresas estiveram presentes para trocar ideias em torno das novas projeções do Fundo Monetário (FMI) sobre o nível de atividade dos países e do mundo. Nossos principais representantes, pelo lado do governo, eram o ministro Fernando Haddad e o presidente Campos Neto, do BCB.
Por trás da cortina do grande teatro da banca mundial, se encobrem as mal guardadas “verdades” sobre a situação financeira dos países e as preocupações sobre as “surpresas” que podem fazer derramar o ponche da festa. Entre as “verdades” mal encobertas, está o fato de que os EUA, como potência financeira, embora mantendo amplo domínio sobre o dólar como moeda de reserva e de referência comercial, no entanto, já não podem mais se jactar de ser uma nação de “risco zero” em matéria de credibilidade política e financeira. O chamado nível triplo A (AAA) – de máxima qualidade de crédito – um dia atribuído pelas agências de rating ao risco da dívida pública dos EUA, já baixou para um envergonhado duplo A. A dívida americana, na última década, cresceu ao dobro da velocidade da expansão do PIB. Em proporção do PIB americano, portanto, a dívida pública dos EUA saltou de cerca de 60%, antes da crise financeira de 2009, para mais de 120% hoje. O consumo americano continua embalado, mas o vento que o assopra é uma dívida que não para de crescer.
Existiria alguma outra nação que possa fazer frente ao gigante americano? Putin tem delírios de ver a Rússia nessa posição. Mas essa é uma surpresa com a qual ninguém precisa se preocupar. A Rússia virou um solteirão estranho e mal-encarado, morando de aluguel no condomínio de luxo do primeiro mundo. A China, sim, é quem pode alimentar a veleidade de vir a desbancar o predomínio do capitalismo norte-americano. O líder chinês, Xi Jin Ping, parece determinado a isso, como projeto de longo prazo. Mas sabe ele bem que um avanço geopolítico prematuro na contestação aberta aos EUA pode custar à China recuar muitos passos no seu próprio crescimento, que já perde fôlego nos dias de hoje, enquanto se acumulam nuvens de forte desequilíbrio em seu sistema financeiro interno, gerando queda nas bolsas chinesas e fuga recente de capitais. Pequim não vai pagar pra ver.
A grande “surpresa” dos próximos meses e anos, se vier, tem carimbo nas contradições internas dos EUA. O próximo conflito, capaz de abalar a plateia do grande teatro, não terá origem, como nos primórdios da segunda guerra mundial, num expansionismo japonês – que não existe – ou, no latente embate entre as tropas da OTAN e da Rússia, que existe, mas sem a dimensão para envolver o resto do planeta.
A “surpresa” parece estar dentro da caixinha da política interna norte-americana, pela pobreza de ideias dos lados em disputa e pelos riscos que essa falta de boas estratégias pode gerar. A dupla de políticos que disputará as eleições de novembro nos EUA é, de longe, a pior combinação possível de idade avançada com mentalidade atrasada.
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Por essas considerações, o leitor bem informado deve duvidar das atuais projeções do FMI sobre o desempenho do mundo nos próximos dois anos. Com a repetição do mesmo número ocorrido em 2023, um crescimento mundial de 3,2%, agora projetado para 2024 e 2025, o FMI nos diz que vamos a um “passeio no parque” no cenário do planeta. Qualquer um ficará com o direito de se perguntar de onde os técnicos do Fundo Monetário foram extrair tanta certeza de estabilidade no ritmo e no comportamento dos mercados nos próximos 24 meses.
Essa certeza está longe de existir. O FMI é anfitrião de uma reunião de pessoas da alta finança mundial. Não é de bons modos alardear que tudo possa desandar. No entanto, numa escala razoável de risco político, a emergência de algum elemento de surpresa negativa se afigura a cada dia mais provável. Pode ser uma faísca das várias guerras em andamento no teatro planetário, como pode bem decorrer da conjunção infeliz de várias situações que levem um dos atores a um passo do qual não possa mais recuar. Os EUA já não têm, como tinham até o final do século 20, o controle firme dos atores no teatro dos grandes interesses nacionais ou regionais em conflito. A população americana, ela mesma, vive um poderoso conflito doméstico. Por isso, é bom que fiquemos de olho e muito atentos sobre o que se esconde por trás da cortina.