As dramáticas cenas de dor, perdas e resgates heroicos em virtude das enchentes nas principais bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul têm comovido a população brasileira e deflagrado uma onda gigantesca de solidariedade por todo o país. Do que a mídia mostrou até agora, ficam patentes algumas impressões: 1) a mobilização da população em geral e de empresários da região se fez mais presente e imediata do que as providências dos governos, principalmente das autoridades federais; 2) não transparece a existência de uma autoridade federal (ou estadual, no caso) para responder com agilidade e prontidão a grandes desastres ou catástrofes, haja vista a nomeação apressada de um ministro “dos desastres”; 3) a Federação brasileira realmente “não existe” em termos financeiros, pois tanto o estado (no caso, o RS) como os municípios gaúchos se puseram imediatamente de joelhos diante de Brasília, ao suplicar por verbas federais como sua tábua de salvação. O duvidoso futuro do Rio Grande do Sul parece depender do governo federal, justamente daquele que muito mais suga do que verte ao povo.

 


Eventos climáticos extremos, com repercussão significativa em perdas de vidas humanas, de animais e safras, de infraestruturas e de habitações, vêm se tornando quase habituais, sem que haja, por parte dos governos, ações e providências coordenadas para “deixar tudo preparado para cuidar da próxima fatalidade”. Nosso estado de “imprevidência” é permanente e gritante, haja vista os relatos técnicos de encarregados e estudiosos do Sistema de Prevenção de Inundações e Drenagem Pluvial de Porto Alegre, sobre a situação de relativo abandono das comportas e equipamentos de sucção ao longo do Guaíba, que não teriam tido a adequada manutenção preventiva nem a modernização requeridas.

 


Mas o limão amargo não se resume a isso. As prefeituras do país inteiro são lenientes com a ocupação de calhas secundárias inundáveis dos rios, onde sempre se conta a maior parte das vítimas fatais e da destruição de casas e equipamentos, aí situados irregularmente. A limpeza de cursos d’água também são infrequentes. Tampouco se previnem as infraestruturas pesadas, como pontes, contenção de encostas e pavimentos de estradas, que não são construídas com margem técnica para suportar o acumulado de uma “chuva de 50 anos”, como se costuma denominar uma precipitação extrema. Belo Horizonte, entre tantas capitais, sabe disso. Uma parte do orçamento dessas obras costuma ficar pelo meio do caminho...

 


A tragédia do Sul é um limão extremamente amargo, não só para o povo gaúcho, atingido diretamente, mas para todos nós, que percebemos, até com certa vergonha, como nosso país permanece despreparado e mal gerido, apesar de pagarmos a maior carga tributária das Américas (incluindo os EUA), cujo nível de 34% rivaliza com a carga média europeia, mas não entrega sequer uma fração dos serviços públicos de padrão europeu. A maior enchente do país não provém, portanto, da inundação de rios, mas da torrente de verbas públicas lançadas ao desperdício.

 


O governo brasileiro é pródigo em apalavrar bilhões, quando os promete como se fossem tostões. Abrindo o site Gov.br, ali se lê que a nova Medida Provisória em favor do RS representará desembolsos da ordem de R$ 60 bilhões. Mas o que é isso em magnitude? Consultando o Siconfi – base de dados das receitas estaduais – conhecemos a arrecadação corrente do governo do estado do RS em 2023: foram exatos R$ 60,5 bilhões. Comparando as duas grandezas, concluímos que a ajuda federal ao RS igualaria a arrecadação total anual daquele estado. Não parece verossímil. O anúncio federal soa fora de proporção e de cunho eleitoreiro.

 


Suponhamos, contudo, que o governo federal tenha tamanho apetite de ajudar. Se quisesse pensar numa manobra financeira definitiva para recompor não só as finanças do RS, mas também a autoestima dos gaúchos, dando-lhes a alforria definitiva para virarem protagonistas da recuperação do seu estado, o caminho seria recalcular o valor contábil da grande dívida gaúcha junto ao Tesouro Nacional, usando um indexador de correções anuais para trás, compatível com o equilíbrio de pagamentos a longo prazo. Fizemos essas contas e o resultado é intrigante: a dívida do RS cairia a algo como metade do valor atual de R$100 bilhões. Por sinal, algo semelhante aconteceria com as dívidas de MG e do RJ. Estamos falando, no caso do RS, de um recorte de dívida da ordem de R$ 50 bilhões, permanente e definitivo, não mero perdão de juros.

 

Em seguida, essa nova dívida gaúcha seria oferecida aos investidores, marcando o fim da incestuosa relação entre União credora e estados pedintes. Uma nova realidade se abriria em termos de gestão de crise e de retomada econômica no RS, com o estado ficando à frente das iniciativas de infraestrutura e da recuperação de sua própria economia. O limão iria para o copo como uma saudável limonada.

 


A abordagem paternalista das crises que se abatem seguidamente pelo Brasil é reveladora da enorme dependência dos estados e municípios brasileiros às verbas que transitam do bolso de cada munícipe até chegarem a Brasília, pagando os mais gravosos pedágios burocráticos para, afinal, voltarem às unidades da Federação (Estados e Municípios) carimbadas e fantasiadas de “bondade federal” pelos políticos inquilinos dos orçamentos planaltinos. As inundações, com sua violência, destampam não só nossas debilidades administrativas locais mas, sobretudo, desmascaram a farsa da Federação brasileira, aprisionada por um sistema tributário centralizador e totalmente arbitrário. Tempo de mudar, para prevenir a falência do futuro.

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