Há economistas para todos os paladares e plateias. Mas são muito raros os profissionais das ciências econômicas (assim mesmo, no plural) que conseguiram, ao longo de décadas ininterruptas, emocionar e mobilizar opiniões tão universalmente quanto o “sempre professor” Antônio Delfim Netto (1928-2024). Mestre Delfim se foi no mês passado, dia 12. Até muito pouco tempo antes de sua passagem, Delfim permanecia antenado e interativo com todos os fatos relevantes e as pessoas influentes da vida nacional. Sua mirada longa se estendia ao cenário mundial, que também acompanhava de perto.
Não obstante esse lado de cientista, sempre ligado na observação dos detalhes capazes de elucidar as difíceis charadas econômicas, a “persona” de Delfim dos palcos e salões era outra: a de um sedutor cerebral. Era como se a cabeça mudasse de roupa, despindo-se do jaleco da ciência para vestir o black-tie do espetáculo. Onde quer que chegasse, virava o centro das atenções. Tinha o magnetismo e o absoluto controle do binômio corpo-verbo. Administrava sua própria figura diferenciada, professoral, conjugando aquele percuciente olhar, ligeiramente estrábico, com o domínio perfeito das sacadas ferinas e das observações de final inesperado, transformando o mais soturno dos temas em algo possivelmente hilário. Tão risível quanto verdadeiro.
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Aos jovens economistas, às vezes afetados pela falaciosa busca da verdade irrefutável, caberia anotar e meditar por que sempre encontramos nos cérebros mais iluminados o destemor por constatar, em cada descoberta, que o lado desconhecido da realidade é ainda maior do que a parte explicada ou desvendada. Os grandes economistas não têm medo do que não sabem. Pelo contrário, o mapeamento das zonas obscuras do conhecimento humano é o que clareia o entendimento das pequenas partes iluminadas por suas boas descobertas, que precisam vir recheadas de dados e boas evidências. O domínio do “não-saber” e o saber a diferença entre a parte sabida e a desconhecida, esse é o atributo maior dos grandes profissionais do Conhecimento humano, pois é este domínio entre o claro e o escuro que permite a ousadia das políticas econômicas e sociais realmente inovadoras. Para chegar perto desse estágio, em que Delfim e mais alguns poucos da sua geração habitavam, é preciso o cultivo de uma disciplina rara ao longo de toda a vida: o estudo e a pesquisa continuadas.
Delfim era um faixa-preta coroado na arte de estudar continuamente. Dominava como poucos as teorias econômicas. Gostava dos livros – amava essa fonte de inspiração e deles extraía, sobretudo, paixão. Delfim se comprazia pelo fato de haver lido e refletido sobre a maioria das obras colecionadas na sua gigantesca biblioteca, doada em vida à sua querida alma mater, a Universidade de São Paulo. Era professor emérito mas, antes disso, era um persistente e emérito autodidata. Delfim conseguia apreender, com intensidade e rapidez, a natureza econômica dos fenômenos sociais. Isso despertava a comoção admirada das plateias encantadas por sua inteligência aguda enquanto, do resto da comunidade de mestres, ele curtia, num silêncio gozador, a pitada de ciúme dos colegas pela fulgurância de sua personalidade orbital.
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Como pensador, não estava datado nem carimbado. Os colegas não o viam como o outro contemporâneo liberal que foi, com marca registrada, seu parceiro de armas, Roberto Campos. Delfim tampouco se confundia com um keynesiano típico – alguém mais ao feitio do saudoso Ministro J.P. dos Reis Velloso. Para se despistar de rótulos, Delfim se enfileirava como um “socialista fabiano”, coisa que nunca foi, embora não lhe faltasse, ao fim do dia, a sensibilidade social que escasseava em outros brilhantes colegas do lado conservador. Delfim era, enfim, um eclético na teoria e um adaptativo na prática. Essa fórmula, aliás, serve bem como postura recomendada a jovens economistas que não pretendem se perder na formosa ilusão de alguma ideologia, qualquer uma. O essencial, na prática profissional da economia, é tentar capturar, como próprias do investigador social, as motivações do chamado “agente econômico”, seja ele o empresário, a dona de casa, o trabalhador, o estudante, o governante. Cada um de nós carrega um feixe de motivações que funcionam como molas propulsoras (os incentivos) para fazer tudo que elegemos, seja comprar, vender, fabricar, interagir ou, até mesmo, destruir. Por manejar tão bem essa poderosa habilidade adaptativa de ler as motivações alheias, Delfim conseguiu ser sempre um homem do diálogo político entre esquerda e direita, entre conservadores e progressistas, entre banqueiros e sindicalistas. Os inteligentes o respeitavam, os esforçados o veneravam, mas todos o parafraseavam. Nesse ecletismo, o sempre sobretudo Professor soube usar muitas outras gabardines: foi político quando quis, foi articulista incansável, foi várias vezes ministro e o czar da economia no melhor momento econômico dos últimos cem anos do Brasil. Foi também embaixador, sempre um agilíssimo negociador e, por que não, um pouco conspirador, nos momentos mais polêmicos de sua longeva trajetória de vida.
Conspirou sim, incessantemente, por maior racionalidade nas políticas econômicas do país, conspirou por colocar as pessoas certas para liderar nos postos e nas horas corretas, conspirou tenazmente pelo desenvolvimento acelerado do nosso complicado Brasil; conspirou, quando deu jeito, pelo retorno do país à democracia formal, e batalhou por esse grandioso objetivo na Constituinte de 88, pois sonhava para o Brasil uma Carta Constitucional prática e futurista. Frustrou-se bastante nisso, mas sempre com sobriedade e respeito pelo texto prolixo e, às vezes, retrocessivo que emergiu das fantasias da Constituinte, fruto da adotada inequação matemática entre profusos direitos concedidos a todos e a penúria de deveres escalados para quase ninguém.
Se não acertou sempre, conceda-se, é porque Delfim Netto era, como nós, um humano, embora pudesse, ocasionalmente, parecer de outro planeta maior. Agora que partiu, depois de longa vida neste plano fugidio e inclinado, ele se foi para aquela morada virtual da Inteligência Superior, que nada tem de artificial, pois que sideral.