Todos precisamos orar. É quando nos aproximamos do imponderável, quer para pedir ou para agradecer. Enquanto o previsível pode falhar, por nossa conta e risco, a mão de Deus opera nas franjas da irrealidade, daquilo que consideramos além do inesperado, aquilo que não pode ser decifrado numa curva de riscos. Isso é o imponderável, o incalculável, até o inimaginável.
Dois milhões de romeiros e promesseiros se deslocam anualmente, no segundo final de semana de outubro, até Belém, casa da Virgem de Nazaré, honrando uma tradição ininterrupta de mais de 200 anos. Este ano, como habitualmente, o mar de gente, que entupia as principais ruas do centro da capital paraense, fez da procissão algo singular entre todas as festas mundiais em homenagem à mãe de Jesus. Na avaliação de muitos participantes, o oceano de pessoas parecia ainda mais vasto do que em edições anteriores.
Tive o privilégio de lá estar, participando tanto da procissão fluvial que acompanha a chegada da imagem da Santa pela baía de Guajará, no sábado, como, no dia seguinte, seu deslocamento pelas ruas de Belém. Ao longe pude ver a embarcação da Marinha, conduzindo a imagem, envolta num manto sublime – tradição que remonta às raízes da devoção – e lá se destacava a figura de um devoto especial, o presidente Lula da Silva.
Muitos criticaram a organização do evento por permitir que Lula, como político, carregasse, por alguns momentos, a imagem, tocando o manto abençoado. Esse manto, até a última hora cercado de sigilo e mistério, é obra artesanal confiada a um grupo muito especial, este ano liderado pela estilista Letícia Nassar, que se inspirou num texto por ela elaborado em função do mote Perseverança na Oração.
Trabalho fora-de-série, tanto no aspecto conceitual quanto por sua concretude superlativa, o cintilante manto deixou a comunidade feliz com Letícia e comovida pela beleza visual daquela homenagem a Nossa Senhora. Na derradeira procissão, domingo, o povo cantou por muitas horas em oração contínua, enquanto romeiros desfilavam sua fé e carregavam suas promessas (pedidos e graças alcançadas) sob as mais variadas formas: moldes de cabeças, de pés e pernas, e sobretudo, maquetes de casas, muitas casas, e de livros, carregados sobre as cabeças dos passantes. Um espetáculo comovente e único.
Como se desenrolam várias horas de procissão, há tempo de orar, de cantar e, também, de observar e refletir. Primeiro, sobre a riqueza humana do nosso povo brasileiro, ali desfilando sem um só incidente – salvo por desmaios, pela emoção e pelo calor intenso – e pela elevada compostura das pessoas, na sua vontade de “ser uma comunidade” e sua intensa disposição de perseverar. De não desistir da vida, de não arredar do Brasil.
Em segundo lugar, impossível não refletir sobre a responsabilidade de Lula da Silva diante do Círio. Este Silva especial, nosso presidente, aparentemente tão aturdido por uma conjuntura doméstica e mundial que ele já não maneja como outrora, tão pouco amparado por auxiliares deslocados de seus reais talentos, tão confuso por conceitos vazios do tipo “nós contra eles”, que não mais mobilizam mentes nem inspiram corações, este é o presidente que deve conduzir a nação perplexa (mas atenta) por mais dois anos, navegando mares encapelados de juros, ondas financeiras gigantes que ameaçam a nau da economia, fragilmente defendida por marinheiros inexperientes e palpiteiros de convés.
Lula da Silva fez bem de ir ao Círio e lá tocar a imagem da Virgem de Nazaré. Naquele momento, mal ou bem, ele nos representava a todos, diante de Maria. Ali, Silva parecia um resignado diante do imponderável, que é o atual contorno do país, em plena mudança de sentimento coletivo – aliás, evidenciada pelo resultado acachapante das eleições, ao fazer ajoelhar as forças políticas, antes poderosas, da esquerda e centro-esquerda.
Não obstante, esse impulso de busca eleitoral por algo novo e promissor ainda tem sua possível realização como algo quase tão remoto quanto a graça buscada pelos promesseiros, quando carregam pedidos em suas cabeças. Silva e o Círio se encontraram numa curva do imponderável para o Brasil. O Círio e o Brasil são hoje muito maiores do que Silva, o Lula resignado e romeiro.
Esse descompasso de magnitudes, os liderados se tornando tão maiores e mais complexos do que o líder, exigirão deste não só muita reza e reflexão mas, sobretudo, perseverança na oração. Como navegador do imponderável, o presidente precisará de forças e bençãos especiais para conduzir o Brasil por um 2025 especialmente difícil, de verbas encurtadas pelo imperativo de cortes nos gastos que ele, Lula, gostaria de fazer a rodo, da explosão de despesas financeiras decorrentes do impensado desencontro entre Fazenda, Banco Central e mercados ao longo de 2024, de atrasos na agenda das poucas reformas em curso – especialmente a tributária – e pela crescente insubordinação das bases políticas de apoio ao presidente no Congresso e nos Estados.
Se Lula da Silva houvesse descido ao nível da rua e se misturado ao mar de devotos – a nossa gente brasileira – ele certamente também levaria, como bom promesseiro, uma casa inteira de sonhos na cabeça: uma morada do tamanho do Brasil.