A principal polêmica do momento nas discussões sobre gestão macroeconômica tem a ver com o cumprimento da meta fiscal. Muitos continuam insistindo que o governo deveria se agarrar à meta de déficit primário zero em 2024, que prometera há algum tempo no bojo da proposta do Arcabouço Fiscal, em que pese Lula da Silva já ter sinalizado explicitamente que, ante a virtual impossibilidade de conciliá-la com a desejada retomada dos investimentos públicos em infraestrutura (hoje, como se sabe, em extrema carência), ele tenderia a optar por maiores investimentos. Em contraposição, veio a interpretação de que o governo gosta mesmo é de gastar mais e ponto final.
É possível, contudo, imaginar que, previamente ao desabafo, Lula tenha percebido nas discussões internas de seu governo, que, dada uma certa receita máxima projetada, os gastos correntes obrigatórios (ou seja, aqueles previstos em alguma legislação muito difícil de descumprir ou alterar) seriam de tal dimensão no ano que vem, que seu plano de investimentos não encontraria cobertura suficiente nas receitas remanescentes previstas. A partir daí o mundo dos analistas pesadamente pró-ajuste-fiscal quase cai abaixo.
Onde está o “x” da questão? Para tanto, é preciso entender, antes de tudo, que o principal vilão dessa estória de gastos obrigatórios se chama déficits previdenciários públicos explosivos, e, assim, “destruidores” do espaço para investir. Na última década, as taxas médias reais de crescimento percentual dos gastos previdenciários foram: 12,5; 5,9; 5,1; e 3,1%, nos municípios, estados, Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e União, respectivamente, enquanto o PIB crescia apenas algo entre 1% e 2%.
Essa é uma situação obviamente muito difícil de administrar. Ou seja, o forte crescimento desses gastos forçou os gestores públicos a direcionar apenas recursos residuais para investimento e “outras despesas correntes (custeio)”, após a cobertura dos super rígidos gastos relacionados com Previdência e com as tradicionais “vinculações” de receita (como em saúde e educação), e outras formas de rigidez impossíveis de evitar a curto prazo (como em pessoal “ativo”, assistência social e demais gastos obrigatórios por lei).
Diante disso, se olharmos apenas o caso da União, para ficar no mundo que circunda Lula mais de perto, o peso do item Previdência aumentou de 19,2% para 51,8% do gasto total entre 1987 e 2021; o dos gastos obrigatórios ficou entre 47,1% e 45,1%, enquanto os investimentos caiam de 16% para 2,2% do total, e os demais gastos discricionários, de 17,7% para 0,9% do total. Chocante, não é?
O que terá de ser feito prioritariamente é o equacionamento ou zeragem dos déficits financeiro e atuarial de todas as previdências públicas, conforme passo a passo que vai aos poucos se tornando conhecido. Exigência essa que, inclusive, foi introduzida na própria Constituição pela Emenda Constitucional n. 103/19, embora praticamente quase ninguém obedeça a ela. Só assim se abrirá espaço orçamentário para investir e, depois, crescer.
O problema maior é que esse é um trabalho complexo e penoso, que ocorrerá em uma área politicamente sensível, e que envolve examinar a evolução recente das contas do ente em causa, nem sempre facilmente disponíveis, e, na sequência, projetar os principais itens dessas contas por um período suficientemente longo, onde a principal motivação é perguntar em quantos anos os investimentos tenderão a zerar, se supusermos a evolução futura dos déficits previdenciários nos próximos anos conforme o melhor estudo atuarial também disponível. A partir daí desenha-se o plano de ação.
Só que, para se ver como esse não é um problema trivial, há estados, como o do meu Piauí, que já fizeram a reforma de benefícios, ampliaram alíquotas de contribuição e aportaram um conjunto de imóveis à previdência. Todavia, embora ele tenha diminuído significativamente, tais regimes ainda apresentam um déficit financeiro e atuarial substancial.
Mas já há suficiente conscientização sobre medidas adicionais que podem ser adotadas para dar conta do trabalho de equacionamento previdenciário (ou de zeragem dos déficits financeiros e atuariais) em mais algum tempo à frente. O conjunto dessas duas fases de medidas podem compor um programa bem pensado de ajuste que Lula da Silva pode apresentar à sociedade brasileira, explicando que, dessa forma, o país pode desobstruir em um certo período de tempo à frente o espaço destinado a aumentar os investimentos e viabilizar a retomada do crescimento, sem precisar zerar o déficit primário no primeiro ano.
Para tanto, ele pode solicitar o testemunho de seu ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, que fez a primeira parte desse trabalho no seu recente mandato como governador do Piauí, e do atual governador, Rafael Fonteles, que no momento dá início à segunda parte do mesmo trabalho, tal que, em pouco tempo a experiência recente de seu Estado poderá confirmar que Lula estava certo em não se precipitar no tratamento do assunto.