Ainda assistimos a mulheres sendo maltratadas por homens, que, contrariados, criticam, castigam, batem e matam
 -  (crédito: Pixabay/reprodução)

Ainda assistimos a mulheres sendo maltratadas por homens, que, contrariados, criticam, castigam, batem e matam

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Como já disse em outras oportunidades, a política nem sempre anda em sintonia com o que parece ser o desejo do cidadão. Habitam um mundo paralelo, de extremo conservadorismo, apontando o dedo acusador, vigiando e punindo, como escreveu Foucault.

 

Castigar e submeter as mulheres pelas vias da lei, escrita por e para homens, pertence a um tempo passado, no qual elas não podiam sair sozinhas, não podiam aprender a ler e, nos raros casos em que aprendiam, as leituras eram censuradas. Elas não podiam votar; desejar era pecado.

 

 

 

Estamos voltando aos tempos do Antigo Testamento, da Lei de Talião: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente, em que o amor cristão ainda não tinha lugar, a empatia não era considerada e os pecadores apedrejados em praça pública.

 

E vejam que os políticos tramam na surdina e fazem como em 12 de junho: em 23 segundos, aprovaram na Câmara dos Deputados a urgência na tramitação do Projeto de Lei nº 1.904/24, que equipara o aborto de feto quando houver viabilidade fetal – que será presumida em mais de 22 semanas de gestação, nada impedindo que ocorra antes – ao crime de homicídio simples. Traduzindo: se a mulher que for estuprada praticar aborto após 22 semanas de gestação, será considerada criminosa e a pena chega a até 20 anos.

 

No Artigo 213 do Código Penal, a pena de estupro é de seis a 10 anos, aumentada para oito a 12 anos caso resulte em lesão corporal grave. Caso a vítima seja menor de 14 anos, ou esteja em situação de vulnerabilidade que impossibilite a capacidade de oferecer resistência, a pena é de oito a 15 anos, aumentada para 10 a 20 anos caso resulte em lesão corporal grave, conforme o Artigo 215.

 

Na prática, em relação ao aborto de gravidez resultante de estupro, a punição poderá ser maior para a mulher que optar por interromper a gravidez indesejada do que a pena do próprio estuprador. Permanecerá privada de sua liberdade por mais tempo que seu agressor! Uma impensável inovação legislativa.

 

 

Agora tentemos entender onde estavam com a cabeça os criadores desta discrepância surrealista, porque, certamente, não estavam pensando, ou pensam como os inquisidores da Idade Média. Por que não queimar na fogueira então? Estavam espalhando o terror, não acolhendo uma vítima da violência. A sociedade deve proteger o cidadão e não achacá-lo odiosamente.

 

Esqueceram que somos seres de livre arbítrio, até mesmo podemos escolher pecar, e nem o próprio Deus nos impedirá. E não foi à toa que a sociedade caiu em cima com críticas nas redes sociais e mídias convencionais, pois é completamente fora de propósito. Críticas merecidas. Ora, deputados, pensem antes de fazer. Bom senso nunca é demais!

 

A música de Chico Buarque, “Geni e o zepelim”, espelha a situação da mulher maltratada. Espelha a odiosidade, que muitas vezes assistimos nos (e nas) machistas que, contrariados, criticam, castigam, batem e matam:

 

“E é por isso que a cidade/ Vive sempre a repetir/ Joga pedra na Geni/ Joga pedra na Geni/ Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá pra qualquer um/ Maldita Geni.”

 

E não me venham dizer que isso acabou. As estatísticas estão aí para confirmar a trágica situação que não muda, embora a educação e a mídia insistentemente alardeiem o absurdo que se perpetua há séculos. Não podemos negar os avanços, mas apontamos restos da cultura moralista e cruel que vem ganhando corpo. E muitos deles ainda se dizem cristãos...