Regina Teixeira da Costa
Regina Teixeira Da Costa
EM DIA COM A PSICANÁLISE

O erro do culto à felicidade

Se enganam os que acreditam que a riqueza e a felicidade sejam possíveis e estáveis numa vida que é finita. A felicidade plena é inalcançável

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As vozes do capitalismo são, hoje, ideais da cultura. A sociedade contemporânea é regida pelo discurso capitalista, que curto-circuita as relações, favorecendo o gozo do lucro, e funciona prometendo a felicidade a cada aquisição de objetos oferecidos nas prateleiras de infinitos produtos do mercado. E cada demanda atendida das vozes do mercado dá lugar a outra, num deslizar metonímico que nos atira numa infinita corrida para a completude. A cada compra, outras vão chegando com uma urgência, como se não pudéssemos prescindir de nada. A voz do mercado é imperativa: goza!


Mas, o pior mesmo, que não sabemos, é que, quando a falta falta, surge a angústia. Ela é um sinal, um afeto, experimentado e sofrido. Um mal-estar que dói no peito, gerado pelo tamponamento dessa falta que mencionei e de qualquer brecha ou vazio, fonte do desejo, da criatividade e da possibilidade de qualquer novidade.


O tempo do excesso, do fortalecimento do ego, da acumulação tem como ícone o sul-africano naturalizado canadense e estadunidense Elon Musk, exemplo do sucesso e êxito pleno do capitalismo. Excesso acintoso de acumulação, de ostentação, luxo das altíssimas fortunas concentradas em poucas mãos, contrastando com a pobreza, a favelização e a miséria em vários cantos do planeta.


A riqueza e a felicidade são cultuadas como os mais altos valores. Se enganam os que acreditam que sejam elas possíveis e estáveis numa vida que é finita, ou seja, todas as vidas. A felicidade plena é inalcançável, pelo simples fato de que existe um real que não acata vontades. Ele não anda bem, é um entrave. Fere narcisismos, fratura o ego. Isso não é de todo mal. O homem precisa saber parar.


Porém, nessa pressa capitalista de consumo, sedução e manipulação praticada e à venda por altos preços em espetáculos catárticos, que seguem arregimentando multidões para o sucesso e enriquecimento, logo se mostrará ser venda do óbvio com promessa de mudar vidas, o que de fato não é viável, sequer realista, mas há quem acredite em milagres. Amém.


A superficialidade e a pressa das propostas paralelas ao mercado de gozo capitalista conta com diversas linhas de terapias que prometem a felicidade capturando incautos e urgências que só fazem frustrar ainda mais aquele que sofre, como todos nós, mas que decide quem pode ser feliz.


Will Ferguson, canadense, autor de vários romances, escreveu “Ser feliz” (Companhia das Letras, 2003). Uma crítica à vasta conspiração americana pela felicidade – epígrafe de John Updike para o romance. Ali, uma praga devastadora se alastra no mundo: a felicidade. O mundo sofre uma transformação a partir de um best-seller de autoajuda ultraconvincente publicado por Edwin De Valu, personagem heroico.


A trama diabólica faz a cabeça das pessoas instantaneamente. Com humor cínico, é uma sátira definitiva da mitologia da realização pessoal e seus exploradores comerciais, um retrato impiedoso do mercado e da indústria da cultura, que toca a massa dos desejos coletivos, mais ou menos frustrados, que move a todos, na incompletude e imperfeições inescapáveis à condição humana. Resulta no total avesso do pretendido.


A propósito, lembrei-me do que disse Lacan, em 1957, sobre o behaviorismo, raiz da psicologia americana, oposto radical da psicanálise, que domina atualmente não apenas a psicologia americana, mas amplamente adotada no Brasil americanizado. Pretende superar por completo a inspiração freudiana, tratando Freud como um bobão ultrapassado, negando o que, obviamente, beberam naquela fonte. Não há possibilidade de tratar a subjetividade humana sem considerar a descoberta freudiana.


Afinal, todos os que trabalham com a psiquê humana, mesmo que o neguem e afirmem limitar-se ao presente e imediato, tocam os ecos da infância, a raiz subjetiva: marcas no corpo das primeiras palavras, gatilhos de ansiedade dos traumas.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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