No final de 2023 o STF fixou tese de repercussão geral no julgamento de um de recurso, determinando que a imprensa é responsável pelo conteúdo que divulga, inclusive as falas de seus entrevistados. A regra se aplica quando existirem indícios concretos de falsidade da informação, ou quando o conteúdo não for cuidadosamente analisado antes da publicação.

No caso concreto que deu origem ao recurso, o jornal Diário de Pernambuco publicou, em 1995, a entrevista de um delegado de polícia, que imputou falsamente um crime a uma pessoa. O inocente ajuizou uma ação de indenização em face do jornal que, após condenado, recorreu até o STF.


O caso guarda grande semelhança com a situação de inúmeros médicos, que ao serem acusados pelos pacientes, são automaticamente apontados como criminosos pela imprensa. Até mesmo a infeliz participação de um delegado de polícia traz essa identidade, visto que não são poucos os casos em que as autoridades participam do linchamento social para ter seus 15 minutos de fama.

Após o STF atribuir repercussão geral ao caso (possibilitando que a decisão seja multiplicada nos processos semelhantes) a reação de parte da imprensa foi imediata: alegaram que a decisão seria um ato de censura à liberdade de imprensa, e apontaram os riscos imensuráveis que teriam, sobretudo no caso das entrevistas ao vivo. Mas a queixa da imprensa não se sustenta, pois a decisão é cristalina em reprimir somente os casos de claros indícios de falsidade ou ausência de checagem da veracidade do conteúdo. Portanto, por que tanta preocupação? A decisão não afeta o bom jornalismo, muito menos configura ato de censura à liberdade de imprensa: ela só age contra a negligência grosseira, e a má-fé.

Talvez, a irresignação de parte da imprensa se dê pelo fato de que as fake news são o conteúdo que mais gera engajamento (e faturamento). Daí o desejo de se manterem intocáveis, com o “superpoder” da não-responsabilização. Mas cada bom negócio traz seus riscos, e no caso da imprensa, responder pelo conteúdo publicado é justamente o risco do negócio, principalmente nos casos de erros grotescos e deliberada negligência, como claramente disposto na decisão do STF.

Ora, se até mesmo a liberdade de expressão da qual gozam todos os cidadãos esbarra em claríssimos limites, que são os direitos alheios, por que a liberdade de imprensa deveria ser absoluta? A imprensa goza da mesma liberdade que qualquer outra pessoa física ou jurídica: a liberdade, com responsabilidade. Mas não devemos duvidar do poder da imprensa. Após o chilique protagonizado por certos meios de comunicação, o STF imediatamente emitiu nota, afirmando que a decisão vale apenas para “situações muito excepcionais”, e que pode até ser “revisada” nos próximos dias.

A decisão do STF gerou também uma forte reação no meio político, sobretudo por parte dos parlamentares que fazem oposição ao governo federal. Segundo eles, a decisão seria uma medida para calar a imprensa e “blindar” o atual presidente e seus ministros, das críticas pelas políticas adotadas. Embora exista uma certa lógica neste raciocínio, ele não deixa de ser oportunista, pois estes mesmos parlamentares que criticam a medida, adorariam ter tamanho controle sobre o STF na gestão do último presidente. De igual modo, os parlamentares que hoje aplaudem a medida, a criticariam duramente, caso ocorresse na gestão passada. Trata-se, pois, de uma cegueira politicamente seletiva, digna dos nossos parlamentares.

Mesmo com todas estas críticas, a decisão do STF é positiva para o país. Caso se mantenha, caberá à imprensa se adaptar à nova realidade, ou pagar o alto preço de ser uma mera propagadora de fake news. Com a decisão, a condenação da imprensa em indenizar suas vítimas pelos danos causados será a regra, e não a exceção.

Somente nos últimos 2 anos, minha equipe ajuizou mais ações indenizatórias em face dos órgãos da imprensa do que nos 15 anos anteriores, justamente por ferir os direitos de médicos com reportagens absurdas e sensacionalistas. Trata-se de um quadro crítico, e a decisão do STF certamente irá facilitar a tramitação e o julgamento dos casos, condenando a imprensa pelos danos causados não só aos médicos, mas também a qualquer outro cidadão que tenha seus direitos violados.

O quadro é ainda mais grave quando falamos da pseudo-imprensa que atua nas redes sociais. Páginas de péssimo gosto, administradas por amadores, cheios de ódio e más intenções. Dias atrás, o caso da jovem Jéssica Canedo “chocou” todo o país: um portal de fofocas ultrajou o nome da jovem injustamente, para ganhar cliques e vender anúncios, a levando ao extremo de tirar a própria vida. Isso não é imprensa, nem jornalismo: é um comportamento tipicamente vil criminoso, e assim deve ser tratado pela sociedade, e pela justiça.

De volta ao caso de Pernambuco, que deu origem à decisão do STF: o jornal alegou em sua defesa, o fato da entrevista ser de um delegado de polícia, representante do próprio Estado, buscando assim, se isentar de sua clara responsabilidade. Afirmaram não ter exposto a própria opinião, somente reproduzido a de terceiros. Ora, a vergonhosa participação do delegado não isenta o jornal de suas responsabilidades, na verdade, somente inclui o próprio Estado como autor dos ilícitos civis e penais em face da vítima, gerando dever de indenizar.

Mais uma vez, a analogia do caso em tela se aplica perfeitamente à realidade dos médicos, quando massacrados pela imprensa com o apoio das autoridades do Estado. Por este motivo, também ajuizamos nos últimos anos dezenas de ações indenizatórias contra o Estado, buscando tanto a justa indenização aos médicos vitimados, quanto a cabível punição pessoal dos responsáveis pelos atos ilícitos.

A decisão do STF é um avanço, pois reforça o direito de todos os cidadãos injustamente ultrajados pela imprensa. No caso dos médicos, fica a prerrogativa (ou a obrigação) da efetiva busca pelos seus direitos, demandando a propositura das ações indenizatórias sempre que se sentirem lesados. Para tanto, basta um advogado à altura do desafio e uma boa dose de coragem, pois “Dormientibus non succurrit jus” (o Direito não socorre aos que dormem).


Renato Assis é advogado há 17 anos, especialista em Direito Médico e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador e CEO de seu escritório, especializado em Defesa Médica, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país.
renato@renatoassis.com.br

 



compartilhe