Fachada do laboratório no Rio de Janeiro, onde ocorreu o escândalo dos órgãos contaminados com HIV -  (crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Fachada do laboratório no Rio de Janeiro, onde ocorreu o escândalo dos órgãos contaminados com HIV

crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil

No início de outubro, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ) confirmou um escândalo: seis pacientes, que não tinham o vírus HIV antes de serem submetidos a transplantes, testaram positivo após receberem órgãos contaminados. Esses órgãos haviam passado por exames que, na época, deram resultados negativos.



Como algo tão grave ocorre em pleno 2024, em um país que figura entre os quatro maiores do mundo em número de transplantes de órgãos, atrás apenas de EUA, China e Índia? Em 2023, foram realizados quase 30 mil transplantes no Brasil, sob uma regulamentação técnica rigorosa da Portaria MS 2.600/2009, que estabelece um controle minucioso desde a doação até a realização do transplante.

 



Ocorre que infelizmente, o Brasil também é referência mundial em corrupção, e essa parece ser a explicação mais plausível para mais esta tragédia na saúde pública.

 



Após a detecção dos casos de HIV nos pacientes transplantados, a SES-RJ realizou novos exames nas amostras e confirmou a presença do vírus nos órgãos doados, apontando que a falha ocorreu nos testes prévios. Em todos os seis casos, os exames foram conduzidos pelo laboratório PCS Lab Saleme, com sede em Nova Iguaçu (RJ). A resposta inicial do laboratório foi minimizar o ocorrido, alegando erro humano na transcrição dos laudos e prometendo suporte psicológico e médico aos afetados.



Mas, como de costume no Brasil, o problema é mais complexo. Investigações do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e das vigilâncias sanitárias estadual e municipal revelaram irregularidades gravíssimas: o PCS Lab Saleme não possuía registro no Conselho Regional de Farmácia do RJ (CRF-RJ) nem tinha um farmacêutico responsável registrado. A ANVISA descobriu que o laboratório sequer tinha os kits necessários para a realização dos testes de HIV, indicando que não houve erro na transcrição dos laudos, mas na verdade, os testes sequer foram realizados. Portanto, os seis pacientes infectados com HIV podem ser somente a ponta do iceberg.

 



Se o laboratório não possuía os testes de HIV e os exames não foram realizados, como os laudos dos exames foram emitidos? De forma fraudulenta, é claro! E os absurdos não param por aí: a biomédica que assinava os laudos de testagem dos órgãos também era uma fraude: seu diploma não foi reconhecido pela instituição que supostamente o emitiu, e seu registro no Conselho Regional de Biomedicina pertencia a outra pessoa, que ganha a vida como artesã e não exerce a profissão há anos. O emaranhado de fraudes envolveu também a quebra de protocolos de controle de qualidade dos reagentes usados desde dezembro de 2023, reduzindo custos mas comprometendo a segurança.



Diante dos fatos, o Ministério da Saúde solicitou a imediata interdição cautelar do laboratório, e a SES-RJ determinou a retestagem de 288 pacientes que realizaram testes de HIV desde 12/2023, que conforme recomendação do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), devem ser realizados exclusivamente pelo Hemorio.

 



Mas a extensão do problema é ainda mais alarmante. O laboratório foi contratado para realizar 1,7 milhão de testes em pelo menos 13 unidades da rede pública de saúde no RJ. Só em junho, no Hospital Estadual Eduardo Rabelo, o laboratório realizou 43 mil análises, incluindo 143 testes de HIV. Quantos desses exames foram fraudulentos? Quantas vidas foram impactadas? Podem ser centenas, ou milhares.  



A Polícia Civil do RJ iniciou a Operação Verum, e a justiça autorizou a prisão temporária de quatro pessoas: um médico sócio do laboratório e responsável técnico, a falsa biomédica, o técnico responsável pela análise clínica e o biólogo encarregado da análise dos materiais colhidos. Os envolvidos respondem por crimes como falsificação de documentos, associação criminosa e falsidade ideológica. Além disso, certamente serão alvo de ações civil e criminais de cada uma das vítimas do esquema, que a esta altura, ainda são incontáveis.



Mas onde está a corrupção em tudo isso?



O laboratório foi contratado em 12/2023, através de uma licitação emergencial, para receber a bagatela de R$11 milhões para a realização de testes sorológicos em órgãos doados. Ocorre que os sócios do laboratório são primos do Secretário de Saúde à época da licitação (que é médico, e hoje, deputado federal). O laboratório venceu a licitação com um desconto de 37,01%, superando por mínima margem de 0,01% o segundo colocado, o que levanta suspeitas de fraude no processo.

 



A capacidade técnica do laboratório foi questionada durante o processo licitatório, e o histórico era comprometedor: a empresa já enfrentava há mais de 10 anos inúmeros processos no Tribunal de Justiça do RJ por erros em exames como os de HIV, gravidez, HPV e colesterol. No entanto, nada disso impediu a contratação do laboratório, o que só torna o caso mais suspeito.



Mas nada é tão ruim que não possa piorar: o relacionamento do PCS Lab Saleme com o governo do RJ não começou em 2023. Desde 2022, o laboratório vinha recebendo pagamentos por meio de termos de ajuste de contas (TACs), instrumento pelo qual a administração pública reconhece a prestação de serviços sem o devido contrato. Em 2023 foram celebrados dois contratos sem licitação pública, em caráter emergencial. Segundo dados do Portal da Transparência, entre 2022 e 2024 o laboratório recebeu quase R$ 20 milhões em pagamentos.

 



Mesmo com a interdição pela ANVISA, seria razoável imaginar que o caso está sob controle, certo? Errado... pois um novo laboratório será contratado, novamente em caráter emergencial (ou seja, sem licitação pública), transformando o caso em uma excelente oportunidade para a continuidade do vergonhoso ciclo de corrupção e descaso que infelizmente caracteriza tudo que é tocado pela política no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, onde o mau exemplo vem de cima: os últimos sete governadores foram indiciados por crimes, e cinco deles acabaram presos.



Das inúmeras facetas da corrupção, a que afeta a saúde pública é, sem dúvida, a mais cruel. Infectar pacientes com uma doença incurável em um momento de extrema vulnerabilidade como a agonizante espera por um transplante, é uma forma de crueldade difícil de se conceber. Enquanto prevalecer no Brasil a cultura de impunidade, continuaremos vulneráveis a esses horrores.

 

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Não podemos deixar de citar a frustração em constatar que dois médicos — o dono do laboratório e o secretário de saúde — estão diretamente envolvidos. Embora diplomas não definam caráter, é decepcionante ver profissionais que fizeram o juramento de Hipócrates e juraram defender a saúde humana, por trás de tamanhas atrocidades.



Nas redes sociais, o caso atraiu a habitual polarização, e a turma do “quanto pior, melhor” tratou de contribuir com suas riquíssimas opiniões, sustentando asneiras como “melhor um órgão com HIV do que nada”, ou afirmando que a queixa dos transplantados seria ingratidão com os doadores, demonstrando insensibilidade e reforçando o sofrimento das vítimas.



Além de comprometer a saúde de centenas ou milhares de pessoas, os crimes em questão podem causar um mal ainda mais amplo, comprometendo a credibilidade do nosso sistema de doação e transplantes, que pode afastar ainda mais os doadores, dificultando a vida das mais de 70 mil pessoas que integram a nossa fila de transplantes. O Sistema Nacional de Transplantes (SNT) é reconhecido como um dos mais seguros e transparentes do mundo, e nunca teve qualquer registro de ocorrências desta natureza. Ainda assim, mais de 47% das famílias brasileiras recusam a doação de órgãos, enquanto na Europa a taxa não passa de 15%.



A única via que pode sustentar a credibilidade do Sistema Nacional de Transplantes é a punição exemplar dos envolvidos, e o desenvolvimento de mecanismos que evitem que a corrupção o comprometa novamente. Mas infelizmente, considerando o nosso histórico recente, não devemos ser tão otimistas.



PS: No último dia 25/10, assumi o cargo de Presidente do capítulo brasileiro da ASOLADEME – Associación Latinoamericana de Derecho Medico, pelos próximos 4 anos, em cerimônia ocorrida no 13º Congresso Internacional realizado pela instituição em Foz do Iguaçu/PR. A ASOLADEME possui sede em 10 países e completou este 28 anos em 2024, sou membro da ASOLADEME desde 2016 e planejo muitas realizações, dentro e fora do Brasil, nos próximos anos. Médicos e advogados que desejarem fazer parte do projeto, sintam-se à vontade para falar comigo!



Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.
Site: www.renatoassis.com.br
Instagram: renatoassis.advogado