Renato Assis
Renato Assis
Renato Assis é advogado especialista em Direito Médico, professor e empresário. Seu escritório de advocacia atua com Defesa Médica há 18 anos, em todo o território nacional.
DIREITO & SAÚDE

Políticos vs. Médicos: O Teatro da Hipocrisia

Estas invasões são meros espetáculos para as redes sociais, sem benefícios reais aos pacientes, mas com excelente retorno em autopromoção aos vereadores

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Nos últimos anos, tornou-se uma prática recorrente a invasão de áreas restritas em hospitais públicos por parte de políticos, supostamente para “fiscalizar” o trabalho dos médicos, mas na verdade, para gerar engajamento e viralizar nas redes sociais.

 

O primeiro grande nome a transformar essa prática em espetáculo foi Gabriel Monteiro, ex-vereador do Rio de Janeiro e youtuber. Ele começou, a partir de 2020, a invadir hospitais, hostilizando médicos e outros profissionais da saúde. Um de seus casos mais emblemáticos ocorreu em 2021, quando deu voz de prisão a um médico que estava em seu horário de repouso, acusando-o de dormir durante o expediente. A ação sensacionalista incitou discursos de ódio e ameaças contra os médicos da UPA. Durante a pandemia, ele invadiu hospitais para supostamente fiscalizar o trabalho da equipe médica, chegando a adentrar, junto com sua equipe, no CTI (Centro de Tratamento Intensivo), repleto de pacientes graves em ventilação mecânica, gerando grave risco de contaminação e mortes.

 

 

Monteiro teve uma ascensão rápida, mas sua queda foi ainda mais brusca. Condenado por diversas invasões, teve que indenizar médicos e se retratar publicamente. Em 2022, perdeu seu mandato por acusações de assédio moral e sexual e manipulação de vídeos. No mesmo ano, foi preso pelo estupro de uma jovem de 23 anos, que também o acusou de tê-la contaminado com HPV.

 

 

Desde então, a invasão de hospitais por políticos virou prática comum sob o pretexto de fiscalizar o atendimento dos pacientes, mas com o único objetivo de ganhar visibilidade nas redes sociais. Em 2025, essa prática criminosa atingiu seu ápice, com casos seguidos nos estados de Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Recentemente, um episódio em Minas Gerais teve consequências fatais.

 

A demagogia que mata

 

No dia 3 de fevereiro, um vereador invadiu a “Sala Vermelha” de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em Minas Gerais enquanto um paciente em estado grave era atendido. Seu pretexto era fiscalizar a suposta demora no atendimento. A ação desestabilizou a equipe médica, gerando tumulto e culminando no óbito da paciente de 93 anos. Os familiares classificaram a atuação do parlamentar como arrogante e desumana.

 

Este caso evidencia até onde pode chegar a obsessão pela lacração dos nossos parlamentares. Essas invasões transformam tragédias em espetáculos, sem trazer qualquer benefício real à sociedade ou aos pacientes. O único resultado concreto é a autopromoção e a exploração sensacionalista do sofrimento alheio.

 

Mesmo diante do desfecho trágico, o vereador não hesitou em usar o caso para se promover nas redes sociais. No dia seguinte, publicou um vídeo em seu Instagram, gerando mais de 8,5 mil comentários. Entre eles, destacou-se a manifestação da médica que perdeu a paciente, classificando a conduta do vereador como lamentável, vergonhosa e desumana.

 

A prefeitura do município também se posicionou, afirmando em nota oficial que a atitude do parlamentar “se revela vil e ardilosa, não fazendo jus ao mínimo de humanidade e empatia que se espera de um ser humano, nem se caracteriza como ação fiscalizadora legítima de um vereador no exercício de sua função”.

 

Ainda em janeiro, devido ao crescimento das invasões por parte de vereadores, o CFM publicou nota reforçando seu repúdio a estas fiscalizações em unidades de Saúde, praticadas por parlamentares que buscam somente gerar evidência para si mesmos, fazendo com que os desafios genuínos da Saúde Pública se tornem ainda mais complexos.

 

Fiscalização ou espetáculo?

 

Essas “fiscalizações” não passam de espetáculos midiáticos, que violam prerrogativas médicas e expõe os profissionais a situações de constrangimento. Qualquer fiscalização séria deve ser conduzida por órgãos competentes, de forma técnica e respeitosa, visando melhorias estruturais e um atendimento mais qualificado à população — e não o caos, o tumulto e o constrangimento de profissionais.

 

Embora vereadores tenham prerrogativa para visitar unidades de saúde, essas visitas devem ocorrer com responsabilidade. Qualquer fiscalização deve ser acompanhada pelo responsável técnico da unidade e respeitar a privacidade de pacientes e médicos, evitando acesso indevido a áreas de alto risco. Além disso, o sigilo médico e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) devem ser rigorosamente observados.

 

Cabe ressaltar que não é atribuição de parlamentares invadir locais de descanso dos médicos, pois esses direitos são garantidos por legislação trabalhista. Se um vereador suspeita que um profissional não está cumprindo suas obrigações, deve fazer uma denúncia formal à administração do hospital ou ao Conselho Regional de Medicina (CRM).

 

Consequências das invasões

 

Gabriel Monteiro foi condenado a pagar indenizações de até R$ 40 mil a médicos expostos e difamados por suas ações. Em uma das decisões, o magistrado considerou que o ex-vereador não entende do tema e desconhece a legislação, tendo apenas tentado se promover com a gravação: A lei prevê repousos após o cumprimento de parte da carga horária durante um plantão hospitalar. É evidente o desrespeito e humilhação impostos ao autor, retratado nos vídeos produzidos pelo réu como um médico desidioso, que não cumpre seus deveres funcionais, na atividade pública que desempenha, o que resulta em indevido abalo a sua imagem.”

 

Em outro caso, Monteiro foi condenado a pagar R$ 20 mil a um médico e a se retratar publicamente. A juíza responsável pela decisão enfatizou que “plantões não exigem de funcionários exercício escravo de atividade (...) É fundamental observar o direito ao descanso e a alimentação, para dizer o mínimo.”

 

O CREMESP também se posicionou firmemente contra as invasões: “A atuação dos parlamentares em fiscalizações deve estar pautada em formalidades que respeitem os direitos dos profissionais e pacientes. A Constituição Federal garante o sigilo médico e o respeito ao exercício da profissão, tendo os Conselhos de Medicina, como o CREMESP, a responsabilidade de receber e apurar denúncias referentes ao exercício da Medicina”.

 

Recentemente, obteve na Justiça Federal uma liminar contra o vereador Kleber Ribeiro Galvão de Souza, de Guarulhos/SP, impondo multa de R$ 50 mil caso ele volte a praticar tais fiscalizações de maneira irregular. Pela decisão, o vereador pode fiscalizar unidades de saúde, mas deve estar acompanhado de apenas um assessor identificado, sem portar armas de fogo, e sem expor médicos ou funcionários em seus vídeos. Ainda assim, Kleber ironizou a decisão, afirmando nas redes sociais que continuará fiscalizando e que “ninguém regula um político”.

 

A necessidade de um marco legal

 

Desde 2020, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que tipifica como crime a invasão de áreas restritas em hospitais sem autorização. O texto prevê pena de três a seis meses de detenção ou multa, e de seis meses a dois anos em casos que envolvam violência, grave ameaça ou múltiplos invasores. Em 2023, o projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, mas segue parado.

 

Como os médicos devem agir?

 

Médicos que forem alvo desse tipo de invasão devem agir rapidamente para se proteger. Veja como proceder:

 

Mantenha a calma: Não debata ou confronte, para evitar viralização.

 

Grave tudo: Registre a ação para ter provas.

 

Chame a segurança e a polícia: Se necessário, peça intervenção imediata.

 

Comunique seu advogado: Não tome medidas sem orientação jurídica.

 

Informe o diretor técnico da unidade: A administração deve ser notificada.

 

Registre um boletim de ocorrência: Para formalizar a denúncia.

 

Acione o CRM: O Conselho Regional de Medicina deve ser informado.

 

Considere medidas legais: Como queixa-crime, ação de indenização por danos morais e pedido de remoção de conteúdo das redes sociais.

 

Reflexão final

 

Essas invasões só se tornaram recorrentes porque trazem exatamente o resultado esperado: engajamento. O brasileiro, infelizmente, gosta da “treta”. Enquanto esse tipo de conteúdo continuar sendo amplamente consumido e incentivado nas redes sociais, continuaremos pagando um alto preço. Contudo, cabe um alerta: O internauta que hoje dá “like” no vídeo do vereador e acha tudo engraçado pode, amanhã, estar chorando a morte de um familiar exposto ao circo da lacração.

 

PS: Entre os dias 05 e 08 de agosto, estarei representando o Brasil no 29º Congresso Mundial de Direito Médico, realizado pela World Association for Medial Law – WAML, em Istambul, na Turquia. Será minha segunda participação seguida, após contribuir no Congresso anterior em Vilnius, Lituânia. Estou ansioso para mais uma vez, compartilhar conhecimento com colegas de todo o mundo!


Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.


Site: www.renatoassis.com.br
Instagram: renatoassis.advogado

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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