O hotel Ritz Paris recebe o público com chá da tarde ao estilo francês no Salão Proust -  (crédito: Ritz Paris/Divulgação)

O hotel Ritz Paris recebe o público com chá da tarde ao estilo francês no Salão Proust

crédito: Ritz Paris/Divulgação

Marcel Proust, autor de “Em busca do tempo perdido”, grande frasista, criou a que dá o título desta coluna. Era refinado, inteligente, crítico, perspicaz e se hospedava no sofisticado hotel Ritz, onde oferecia jantares. O Ritz foi vítima da ironia de Proust citando que privilégios estão à venda, que certo tipo de refinamento é comprado e que acreditar no contrário seria ingenuidade.

 


Quem estiver disposto a pagar por privilégios vai ter que gastar mais. Neste campo, tudo está à venda: classe executiva, carros, restaurantes estrelados e bolsas de milhares de euros. Se está clara a relação de comprador e produto comprado, sem as ilusões de que a atribuição de valor associado veio pelo brilhantismo pessoal, então está tudo bem. O problema é o equívoco de acreditar que a coisa tornou o indivíduo mais atraente e mais amado: o privilégio foi comprado, o indivíduo está sendo bem tratado e bajulado porque pagou.

 

 

 

O que confere prestígio muda. Na gastronomia, trocaram-se louças clássicas e pratarias por cerâmicas, tiraram-se a toalha das mesas e lustres de cristal dos tetos. A ironia é que a nova estética despojada supostamente inclusiva se tornou o novo luxo excludente, acessível para ricos.

 

Proust retrata as camadas das relações entre as classes sociais pela gastronomia: a cozinha camponesa da empregada Françoise, a cozinha burguesa na casa de Madame Verdurin e a aristocrática na casa dos Guermantes.

 

 

Com Françoise, Proust retrata a mesa farta da casa de campo, onde moravam os avós do narrador. Françoise cozinhava com maestria, matava e depenava o frango para o horror do escritor na infância, era ciumenta a ponto de pedir para uma ajudante alérgica a aspargos descascá-los e levava como ofensa pessoal se alguém recusasse a sobremesa ou deixasse comida no prato.

 

O menu da casa era a cozinha das estações do ano e do que estava disponível no mercado. Na descrição de Proust, Françoise preparava “um linguado, cuja frescura lhe fora garantida pela vendedora de peixe, um peru, porque vira um muito bonito no mercado, alcachofras com tutano, porque ainda não as fizera daquele modo, uma perna de carneiro assada porque o ar livre abre o apetite e teria tempo de descer daqui a sete horas, espinafres para variar, damascos porque ainda eram uma raridade, groselhas, porque dentro de quinze dias não haveria mais, (…) um doce de amêndoas, porque o havia encomendado na véspera, um brioche porque era a nossa vez de oferecê-lo.” Coisa de chef.

 

 

Além da famosa descrição da madeleine embebida na xícara de chá, de onde emergem todas as lembranças do livro, Proust coloca na mesa burguesa a preocupação maior com a decoração e menor com o sabor dos pratos e na mesa aristocrática os faisões que o duque caçava pessoalmente. Por outro lado, na casa burguesa, havia o gosto por novidades nas artes em geral, retratando a contribuição da burguesia ascendente para o desenvolvimento cultural do século 20, enquanto na casa aristocrática sobrenomes feudais predominavam e os gostos culturais eram engessados.

 

Proust tinha um senso crítico apurado, humor sarcástico, retratando prazeres e crueldades emocionais que ocorrem na vida privada. Sua autocrítica explica sua frase sobre o Ritz, na sugestão de que refinamento e simplicidade são uma coisa só, que a sofisticação é a austeridade do essencial e que exclusividade mesmo está em receber em casa e cozinhar para quem se gosta. Este privilégio não está à venda.