Entre idas e vindas, está confirmado, já há um tempo, que robôs estão criando playlists para o Spotify. Jornalistas investigaram, checando o nome de vários artistas que criaram diversas versões de jazz e outros estilos musicais, e descobriam que eles não existem. A lógica aqui é que o serviço de streaming não precisa pagar direitos autorais a músicos e gravadoras.

 

Já não é fácil ser artista e lidar com os gigantes do streaming, com a alteração constante da linguagem e do tempo de atenção no mundo pós-Tik Tok, mas competir com músicos de inteligência artificial (IA) torna tudo ainda mais complexo. A nova linguagem mudou também a forma como o cinema é feito. Hoje os filmes já começam pelo fim, com cenas eletrizantes de ação que antes eram nos momentos finais, visando prender a atenção da plateia cada vez mais dispersa.

 



 


O Spotify mudou a forma como ouvimos música. Antigamente, saía um novo LP de um artista, ouvíamos de uma vez cerca de 14 músicas diferentes de uma mesma pessoa, de uma mesma voz, com apenas alguns convidados ocasionais numa faixa ou outra. Muitas vezes, um compacto simples antecedia o LP numa espécie de amuse guelle ou amuse buche do cardápio musical que viria depois.

 

 

De qualquer forma, preocupa a ideia da substituição do trabalho humano pela IA. Também não demonizo isso, muita coisa boa pode vir deste novo mundo, que espero seja de fato admirável.


Passamos todos os dias pela dificuldade de conseguir um atendimento humano. Robôs têm apenas as respostas prontas para as perguntas de base. Todos sabem a dificuldade hoje de falar com um atendente humano, seja no telefone do nosso banco ou na operadora de telefonia celular ou de TV por fibra ótica. Tentam nos dissuadir do contato humano o tempo todo. O atendimento pessoal, infelizmente, está em extinção.


O que consola é que até agora um robô não sabe contar quatro hidrantes, identificar motos ou sinais de trânsito. A inteligência artificial nesse quesito ainda é básica. A frase “não sou um robô” – e de fato não sou – ainda nos dá um certo respiro.

 

 

Numa analogia com a gastronomia, um menu degustação playlist poderia alternar países e estilos diferentes como inspiração, ter de tudo e fazer sentido. Acostumamos com a volatilidade das mudanças, entra uma Anita, sai um James Taylor, vem Nara Leão e segue um Jão. Nada contra, ao contrário, eu mesmo já criei dezenas de playlists para aulas de gastronomia diversas, sou um chef-DJ.


Mas, além das saudades do som do vinil, tenho também saudades de ouvir um único artista por 45 minutos. Mesmo que algumas faixas fossem mais ao meu gosto do que outras, não era monótono. Na gastronomia um menu longplay seria o que? Poderia ser um tempero único num menu que alternasse temas intensos e calmos, românticos e agressivos, claros e enigmáticos. Poderia ser uma versão acústica com pratos apresentados de um jeito mais cool e simples, mas sempre com um mesmo acento.

 

 

O que consola chefs e cozinheiros é que, embora a IA possa sugerir, criar cardápios e dar receitas, não pode cozinhar de fato. Enquanto quisermos aromas e sabores reais, atuar sobre os ingredientes e elementos e interagir sobre eles numa verdadeira crônica de gelo e fogo, a gastronomia estará a salvo no mundo onde a conquista competitiva do espaço chegou para ficar.


Ao menos algoritmos não podem e não sabem cozinhar. Enquanto enchem o céu de satélites que vão acelerar cada vez mais as nossas vidas, sentarmos juntos para compartilhar da mesa na cozinha aconchegante de nossa casa será sempre um saudável e vintage respiro no mundo novo.

 

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