Em uma viagem recente, fui a três restaurantes italianos diferentes. Em todos os três, algum prato era, segundo os garçons, receitas da avó do chef. Na minha mesa estava meu genro holandês, que comentou: “não entendo isto, os italianos tratam as avós como se fossem deusas”.
Foi lançado há pouco no Brasil o livro “As mentiras da nonna – Como o marketing inventou a cozinha italiana”, de Alberto Grandi. Desnecessário dizer que o livro causou polêmica na Itália. Paixões à parte, o assunto é interessante. O livro discute o que seria de fato a tão propagandeada cozinha regional típica.
A premissa é verídica. Os fatos analisados de perto mostram que, desde a antiguidade, as ondas migratórias, invasões e conquistas militares definiram não só as línguas como o que se come num determinado lugar. E segue assim.
Sabemos que, quando os portugueses chegaram à Bahia, não havia um só coqueiro na praia. Foram trazidos da Ásia, assim como a galinha e a cana-de-açúcar. A dieta indígena original com o tempo foi se misturando com os produtos que vieram de fora, trazidos pelos europeus e pelos africanos, gerando a base da cozinha brasileira hoje.
O mesmo vale para a Itália. O tomate tem origem nas Américas. Durante muito tempo, era usado lá apenas como fruta decorativa, o pomo de ouro (pomodoro), até que alguém o provou e gerou o molho para pasta mais famoso do mundo. O mesmo vale para outros produtos. As cozinhas inglesa e holandesa até então não conheciam a batata e não havia chocolate na Europa antes do cacau mexicano.
O carbonara surgiu influenciado pelo mac & cheese e pelos ovos com bacon no café da manhã dos soldados americanos na ocupação pós-segunda guerra em Roma.
Um amigo chef ia receber o certificado oficial da Itália reconhecendo a sua casa como legitimamente italiana, mas abriu mão da honraria depois que pediram para tirar o ceviche do cardápio. Entre o selo e o ceviche, a opção foi pela liberdade de ter o ceviche.
A história atesta que, provavelmente, a pasta se originou na China. Marco Polo a teria trazido para o que depois passou a se chamar a Itália (a unificação aconteceu apenas em 1861). Um disco de massa assada e com cobertura, que vai ao forno, é chamado de pizza na Itália, mas existem nomes correlatos em outros países do Mediterrâneo. E, segundo Grandi, foi a imigração italiana em São Paulo, num efeito de colonização às avessas, que aperfeiçoou a pizza em Nápoles.
A Itália hoje é uma potência gastronômica. As reinvenções influenciadas pelo retorno dos imigrantes ao país, levando receitas e conhecimento de ingredientes e técnicas de outros lugares, criaram a cozinha italiana que conhecemos.
O assunto é vasto, mas, de fato, uma avó que tenha hoje oitenta anos nasceu nos anos 1940 do século passado. Muito da cozinha italiana feita hoje ainda não existia. O marketing é poderoso, há selos regulatórios e regras rígidas para preservar este patrimônio, que, inclusive, é uma valiosa commodity.
Mas é fato que os italianos foram capazes de absorver influências e criar uma identidade própria, aliás, como todos os povos do mundo. Assim caminha a humanidade.
Há cerca de alguns anos, uma publicação falou que a cozinha mineira tradicional não existe, que ela veio de São Paulo com os bandeirantes. Parte das raízes da nossa cozinha regional veio de influências trazidas pelos conquistadores. Mas os mineiros aperfeiçoaram o conceito, acrescentando ingredientes. Ninguém duvida que o feijão-tropeiro e o pão de queijo são nossos. Assim como o carbonara é italiano.