Sociedades divididas são difíceis de governar, embora com frequência o que divide as pessoas nem sempre são questões que deveriam de fato importar. O sistema eleitoral brasileiro, como tenho comentado sucessivas vezes, não favorece a formação de maiorias nítidas e orgânicas, capazes de sustentar políticas públicas que impliquem mudanças importantes. O resultado é que os governos não tem projeto de governo e não são cobrados por isto. Na política de polarização uma parte da população apoia o governo de qualquer maneira, sem lhe cobrar nada, e uma outra não aprova nada e ainda acaba torcendo para que tudo dê errado. Não há progresso possível em um país envolvido neste clima.
Neste ambiente, a fervura política, que tanto interessa aos políticos, é alimentada por discussões laterais, próprias para o dissenso. É neste plano que eu classifico os acesos debates que ora se travam sobre o déficit fiscal para o ano de 2024. A unanimidade na imprensa é que o déficit zero é uma necessidade existencial, capaz de determinar o destino do país. Todos os demais problemas do país são postos de lado.
Temos motivos para opor reservas a estes consensos econômicos. A história real não se cansa de derrubar paradigmas até então sagrados. Um economista muito conceituado, da Universidade de Harvard, Dani Rodrik, é de opinião que a resposta certa para qualquer pergunta de política econômica é: depende. E ele acrescenta, para que uma orientação econômica seja útil deve levar em consideração a contingência e o contexto. Este é um campo do conhecimento em que não há verdades absolutas e no qual não devemos exagerar nas certezas.
Os problemas centrais de nosso país continuam sendo o crescimento muito lento e irregular da economia e o baixo padrão de vida da quase totalidade da população. São questões de natureza estrutural e que precisam de uma visão de longo prazo para serem encaminhadas. É difícil imaginar que haja grandes parcelas da população que sejam capazes de divergir sobre isto, mas a pequena política precisa do conflito para manter mobilizadas suas clientelas.
Ninguém pede ao governo um programa de desenvolvimento coerente e sustentável, mas todos querem examinar com lupa qualquer passo que ele dá. Não interessa o passo, interessa o caminho. Esta questão precisa ser discutida num contexto mais geral. Mais importante que o nível dos gastos públicos é a questão de sua qualidade. Se o déficit é zero, ou mesmo se há superavit, mas os gastos são de má qualidade, destinados a atividades que não promovem o aumento da produtividade, a política fiscal estará errada. Se, ao contrário, há algum déficit, mas os recursos adicionais são destinados a investimentos prioritários, capazes de aumentar a produtividade e o crescimento, o aumento da dívida será justificado e sua trajetória será sustentável. Algemar o setor público e confiar tudo ao setor privado, numa situação de crescimento baixo, é um erro.
O Brasil encontra-se no fundo do poço em matéria de infraestrutura. Para quem teve a oportunidade de conhecer outros países, nossa infraestrutura é motivo mesmo de vergonha. Nossos governos perderam totalmente a capacidade de investir e a dívida pública tem crescido para nada. Se é para manter tudo como está, realmente os déficits zero são a melhor alternativa.
É compreensível a apreensão com a ideia de um aumento dos gastos no presente, exatamente porque o governo não é capaz ainda de dizer o que pretende fazer. Se for para aumentar o serviço público e pulverizar os recursos dos investimentos em emendas parlamentares, cujo único proveito é eleitoral, estaremos caminhando para uma situação de insolvência. Está é a questão a ser debatida. Em vez de simplesmente criar uma situação de pânico é preciso exigir do governo que nos responda: qual é o destino do dinheiro?
Se souber responder a esta pergunta de modo convincente o governo terá credibilidade para assegurar que o aumento do gasto vai produzir aumento da renda e a dívida não sairá do controle. O governo aceitaria este desafio?