É hoje consensual o reconhecimento de que a sociedade brasileira nos últimos dez anos se tornou muito polarizada e que esta polarização está formando raízes no tecido social, produzindo o que se pode chamar de calcificação das diferenças. Um livro lançado recentemente, de autoria de dois estudiosos da vida política brasileira, Thomas Traumann e Felipe Nunes, com o sugestivo título de “Biografia do Abismo”, descreve com precisão o processo e desvela suas consequências para a vida das pessoas e para o funcionamento da política.

A política nasce por causa das diferenças de opiniões entre as pessoas. Onde não há divergência, não há necessidade da política que, na sua melhor definição, é o processo de arbitragem pacífica das diferenças por meio de um sistema de acordos e compromissos. Neste sentido, em todas as sociedades livres e democráticas há sempre algum grau de polarização e no Brasil sempre convivemos com a existência de lados opostos operando no interior do Estado, salvo durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e a ditadura militar de 1964 a 1985.

O que há de novidade na polarização recente é que as diferenças políticas estão extravasando a esfera do político e abrangendo a totalidade da vida, o campo das emoções, dos afetos, da visão do mundo, e deste modo definindo a própria identidade das pessoas. Se o processo prosseguir na sua marcha em breve vamos ter dois países, numa convivência difícil e cada vez mais desesperada. Neste caso desaparece a cooperação social e o Estado tende a ficar paralisado, impotente e incapaz de enfrentar e resolver os problemas reais. Até porque não haverá acordo sobre quais serão realmente estes problemas.

Essa difícil realidade não é um privilégio brasileiro. Outras sociedades estão vivendo situações semelhantes, cada uma à sua maneira. Aqui na América do Sul um exemplo é a Argentina, que vive na verdade uma etapa mais avançada da polarização total, quando os dois polos caminharam para os extremos e não parece haver mais esperança de uma solução política que evite o abismo.

O país mais rico e poderoso do Ocidente, os Estados Unidos, vive uma polarização muito mais avançada e completa do que a nossa, com duas populações que não tem mais nada em comum senão a língua inglesa. Lá a polarização está de tal modo consolidada que numa federação de 48 estados, as eleições são decididas invariavelmente em apenas seis ou sete estados. Quase todo o país está enraizado em sua visão do mundo e nada parece ser capaz de produzir a menor mudança.

Entre o Brasil e os Estados Unidos há, no entanto, uma diferença essencial. Na América, o sistema político reflete com fidelidade a polarização existente na sociedade, com os dois partidos representando as duas populações e suas diferenças. Em função da legitimidade da representação, a polarização pode ser resolvida através do sistema político e as populações em conflito percebem que sua voz não se perde no vazio.

Conflitos políticos duradouros são sempre um risco existencial, mas se alguma solução pode haver antes que as coisas saiam do controle, esta solução é a própria política. O estado de coisas na América é fruto dos excessos das facções mais extremadas. Em algum momento esses extremos podem perder força e o centro político pode se reagrupar.

No Brasil. a divisão que existe na sociedade não encontra correspondência no sistema político, nos partidos ou no Parlamento. Dos 33 partidos, raros tem algum programa partidário e quase todos, independentemente do que pensam ou desejam seus eleitores, gravitam em torno do governo – qualquer governo – e mesmo os falsos atritos que provocam não passam de meras manobras táticas para a garantia de recompensas. Governo e oposição, terminadas as eleições, não perdem tempo em formar um condomínio para compartilhar os cargos e recursos do poder.

Por essa razão, a polarização na sociedade brasileira não tem solução nos quadros da política, porque sociedade e política são dois universos paralelos. Quando falham as instituições tudo pode acontecer.

 

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