Quando os Poderes da República se estranham podemos ter a certeza de que o país sai ganhando. Numa democracia que se tornou tão disfuncional como a nossa, quando os Poderes estão em harmonia os limites de cada um deles deixam de ser controlados pelos demais e o caminho fica aberto para toda a sorte de excessos.


No meu último artigo comentei que a principal causa da crise em que vive o Brasil é a desordem das instituições. Embora seja ingenuidade esperar que as instituições venham a se reformar por sua própria iniciativa, nunca me permito esquecer de uma advertência da jornalista Dorrit Harazim que pensamento crítico sem esperança é uma espécie de cinismo. Nada é para sempre na história e tudo pode mudar, às vezes inesperadamente.

 




Nesses últimos dias um desses acontecimentos imprevistos aconteceu, provocando um conflito entre o Judiciário e o Legislativo e dando lugar à esperança de mudanças virtuosas no funcionamento de ambos os Poderes que, na ausência desse conflito, com certeza não ocorreriam. Deste choque inesperado, alguns excessos do Legislativo e do Judiciário poderão sofrer algum limite, em benefício do país e da ordem democrática.


No nosso regime constitucional não há partidos políticos no sentido real da palavra. Na ausência de partidos que expressem as identidades e os interesses políticos da população, as eleições não produzem maiorias coerentes para governar o país. O último governo que dispôs de uma maioria parlamentar orgânica foi o de Fernando Henrique. Da primeira eleição de Lula em diante, todos os governos nasceram sem maioria própria e tiveram que negociar com um Congresso atomizado, composto por grupos e não por partidos políticos. A moeda dessas negociações eram emendas orçamentárias, que o Governo liberava aos poucos, mediante a fidelidade dos parlamentares nas votações. Não era um método estritamente republicano, devemos convir.


Na primeira oportunidade em que um governo se mostrou fragilizado, no mandato de Dilma Rousseff, os deputados deram o troco e tornaram impositivas as liberações das emendas. Tornadas impositivas, no entanto, as emendas evoluíram para um regime de captura pura e simples do orçamento para fins exclusivamente paroquiais, para dizer o menos. Seu valor saltou de 15 bilhões em 2014 para 41 bilhões em 2021, com previsão de 50 bilhões em 2024.


Além do extraordinário valor, a metade constituía o chamado orçamento secreto, no qual o deputado beneficiado com a emenda permanecia no anonimato, por razões que é fácil imaginar. Proibidas pela Justiça as emendas secretas, os parlamentares inventaram, para substituí-las, as emendas de comissão, igualmente sem transparência e rastreabilidade.


Tudo ia bem quando o ministro do Supremo Flávio Dino decidiu suspender o esquema, até que regras de transparência e responsabilização fossem estabelecidas. Uma decisão monocrática, como tornou-se a norma no Supremo. Pela primeira vez, no entanto, a decisão individual foi prontamente levada ao colegiado e confirmada por unanimidade.

 

 


Ferido em seu interesse, o Parlamento reagiu e deu início à tramitação de uma Emenda Constitucional, já aprovada pelo Senado, que restringe quase completamente as decisões monocráticas dos juízes do Supremo e estabelece que qualquer decisão cautelar deva ser prontamente submetida ao Plenário, devolvendo ao STF o caráter de colegiado que é da natureza da sua existência. O Supremo é constituído de 11 juízes, cada um deles escolhido discricionariamente pelo Presidente da República, que em sua escolha naturalmente leva em conta a identidade de visão política do indicado. Este caráter político de cada Ministro se dissolve nas decisões colegiadas no Plenário de 11 juízes, cada qual com sua própria origem e identidade. Essa pluralidade é que assegura o caráter democrático do Tribunal e sua legitimidade.


Assim, do nada nascem duas mudanças que enfrentam os excessos dos Poderes e restituem um pouco de virtude democrática às nossas instituições. Sem o conflito e a desarmonia, nada aconteceria. No fundo este é o modo de funcionamento das democracias.

 

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