A tragédia do Rio Grande do Sul mostrou o conflito insanável entre a visão dominante de “desenvolvimento” e os limites ambientais. Foi nosso primeiro macrodesastre socioclimático. Definiu novo perfil de eventos climáticos extremos causado pelo patamar de aquecimento global inaugurado em 2023. Nem todos os eventos climáticos terão a mesma intensidade devastadora. Aqueles determinados apenas por condições locais não terão a mesma magnitude. Mas a nova marca é global e a confluência planetária de condições propiciadoras de megaeventos extremos será mais frequente e determinará outros desastres como o do Rio Grande do Sul ou piores.

O presidente Lula acertou na atitude, no apoio emergencial e de reconstrução do estado devastado. Porém, parece não querer ajustar as diretrizes de seu programa de “desenvolvimento” às exigências desse novo tempo. As contradições entre o seu comprometimento ambiental e climático e suaconcepção do que é desenvolvimento são evidentes.

Ele insiste em forçar a Petrobras a direcionar a maior parte de seus recursos à reestatização de refinarias que servem apenas à expansão da carbonização da sociedade e à exploração de petróleo no mar do Amazonas. Um erro estratégico, climático e ambiental. Como representante do acionista majoritário, Lula faria melhor em indicar que a nova prioridade seria a transição da Petrobras para uma companhia de energia, programando investimentos para a substituição progressiva do petróleo pelos biocombustíveis, energia solar e eólica.

Entre as prioridades incompatíveis com o compromisso de desmatamento zero na Amazônia está a pavimentação da BR-319, que levará a conhecida destruição em espinha de peixe para regiões mais preservadas da floresta. Espinhas de peixe aparecem com nitidez nas imagens de satélite da região com os cortes transversais da mata ao longo das estradas. Também não se pode considerar parte do progresso, a Ferrogrão, ferrovia que desrespeita os limites de terras indígenas, que são notórias por manterem a floresta muito mais preservada do que as unidades de preservação federais e estaduais.

Progresso antiambiental e anticlimático é o seu contrário, regresso. Lula parece imaginar que basta combater o desmatamento para o Brasil se manter na vanguarda e na liderança do processo de prevenção à mudança climática. Não é. Nossa matriz elétrica é mais limpa por causa das hidrelétricas e do crescimento significativo do uso de energia eólica e solar. Mas nossa matriz energética é fóssil, com excesso de uso de petróleo nos transportes. Nossa logística de grande distância é rodoviária, movida a diesel.

E insistimos no rodoviarismo insustentável sem buscar a eletrificação eficiente de nossas ferrovias, que deviam ser expandidas para transportar cargas e passageiros a longa distância. Também não temos planos para eletrificar nossos transportes públicos urbanos e interurbanos. Desperdiçamos a vantagem de termos melhores condições para descarbonizar o país que a maioria dos países. O líder do PT na Câmara acaba de propor projeto com uma cláusula que garante térmicas a carvão nos leilões de reserva de energia. Quer carbonizar mais nossa matriz elétrica, em lugar de descarbonizar.

As contradições entre a noção de desenvolvimento e o imperativo de conter o aquecimento global nos limites do Acordo de Paris, de 1,5 grau Celsius, não são monopólio da esquerda. Nem preciso mencionar o bizarro negacionismo de Bolsonaro e seu séquito de “fakenewers”.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, desfigurou o código ambiental com centenas de mudanças, segundo ele disse na televisão, “para conciliar desenvolvimento e meio ambiente”. É a desculpa usual daqueles que não veem a questão ambiental e climática como prioridade na definição do desenvolvimento a buscar.

Disse que viu os alertas de eventos extremos, mas “tinha outra agenda, outras pautas, outras prioridades”. Pois é. As comportas emperradas, as bombas inoperantes arrasaram boa parte do estado. A ausência de medidas de prevenção de alcance estadual cuidou de destruir o restante.

Quantos desastres, mortes, cenas devastadoras, perdas irrecuperáveis serão necessárias para que a elite governante do Brasil reconheça que o único caminho é definir a questão climática e ambiental como elemento central do que será desenvolvimento? Isto não nos retira do novo patamar de aquecimento, nem nos livra de eventos extremos, mas nos dá a chance de reduzir sua frequência e nos tornarmos mais resilientes.

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