Tratar os incêndios que se multiplicam articuladamente pelo país como suspeitos de serem criminosos tem suas razões formais, mas beira a ingenuidade. Se examinarmos a frequência de raios, o principal fator de fogo espontâneo, ficará patente que ela não explica os incêndios. A menor incidência dos raios ocorre entre maio e junho, com 8% do total. No período de março a maio, chega a 16%. A maior incidência se dá de setembro a fevereiro, 76% (33% em setembro-novembro e 43%), em dezembro-fevereiro.

 

A intensificação da mudança climática que, como a ciência previu há décadas, prolonga a duração e a extensão territorial da seca, provoca ondas de calor e ventos fortes, facilita as queimadas intencionais. A Amazônia enfrenta estiagem há dois anos. O Pantanal, a seca mais severa em quatro décadas. Alguém ateia fogo e ele se propaga sem controle.

 



 

Em 2022, ainda se podia falar em mudança climática. Em 2023, o aquecimento global ficou 1,5 grau Celsius acima da média pré-industrial. A chegada ao limite crítico do Acordo de Paris estava prevista para 2028-2030 e foi antecipada para 2023. Agora, a ciência tenta determinar se é um evento isolado ou um indicador de permanente agravamento da mudança climática, para rever e, talvez adiantar, os cenários e previsões. O que acontece no Brasil e no mundo neste ano de 2024 é mais um indício de que talvez já tenhamos entrado na etapa em que transitamos da mudança para emergência climática.

 

 

O mundo e o Brasil não fizeram o que era preciso para mitigar o aquecimento global. No Brasil, não adotamos medidas preventivas, nem de adaptação suficientes. O governo anterior desmontou a estrutura de prevenção de queimadas e gestão ambiental. Não preparamos nossas cidades para mais chuvas torrenciais, enchentes e deslizamentos maiores. Também não nos preparamos para as secas cada vez mais longas e severas. Estamos atrasados, e a mudança climática se adiantando.

 

A maior razão do atraso pode ser encontrada no governo anterior que, além de desprezar os alertas climáticos, permitiu o crescimento do crime ambiental por anuência e omissão. Desmontou o aparato estatal de vigilância e prevenção ambiental, combate ao desmatamento e às queimadas. Além de aumentar o desmatamento, a atitude do governo Bolsonaro encorajou a ação de grileiros e garimpeiros. A destruição cresceu na Amazônia, se estendeu para o Pantanal, alimentou a grilagem especulativa e a expansão da agropecuária de baixa produtividade.

 

O fogo não é mais só do desmatamento. A seca prolongada aumenta a parcela de floresta vulnerável ao uso criminoso do fogo para outros fins, inclusive em áreas de preservação e terras indígenas. A incapacidade de reprimir essas atividades também estimula a garimpagem destrutiva. Toda a cadeia criminosa usa de violência e intimidação armada. Os elos dessa cadeia se conectam unindo grilagem, garimpagem, pesca ilegal, narcotráfico e contrabando.

 

São muitos os interesses incendiários. Há interesses escusos e especulativos, o lado sombrio do agronegócio e políticos desejosos de desacreditar o governo, a política ambiental e os ambientalistas. É uma coalizão de grileiros, madeireiros, garimpeiros e políticos no cometimento e acobertamento desses crimes.

 

 

A questão não é mais de suspeita. É de identificação e punição dos culpados diretos e indiretos, os que tocam o fogo e os chefões que estimulam e comandam a ação criminosa. A observação de décadas de crime continuado e da ausência de incêndios espontâneos permite afirmar com certeza que se trata de fogo intencional de ação deliberada. A escala e coincidência do dia do fogo em São Paulo, o alastramento dos incêndios na Amazônia e no Pantanal indicam ação deliberada e combinada que se aproveita do agravamento da estiagem para iniciar o fogaréu.

 

A determinação do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, de que o governo adote medidas mais efetivas, tem base jurídica e factual. A afirmação do governo de que faz tudo o que pode também é baseada em fatos. Os dois lados têm razão. É curiosa essa contradição. Revela as limitações reais do governo, chamado a agir para enfrentar problemas aumentados, quando ainda reconstrói o aparato institucional destruído e tenta renovar quadros envelhecidos e insuficientes. E há um mandado constitucional de proteção que precisa cumprir.

 

Enfrentaremos uma escalada dos desafios climáticos nos próximos anos. Para agir nas novas e mais graves emergências, será preciso superar o atraso e dar um salto à frente.

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