A vitória de Donald Trump é um perigo. Não apenas para o seu país. Para a democracia e para o mundo. Trump pretende desmontar o aparato de “checks and balances” da democracia americana. Se conseguir esse desmonte institucional por dentro, aproveitando-se do poder conferido pelo voto, provará que, se é possível em um país considerado institucionalmente invulnerável, pode ser replicado em qualquer outro país. Mais ainda, ele se refere sempre ao seu projeto de poder como “nosso movimento”. Ele tem nome, MAGA e Trump diz que é “o mais poderoso movimento de todos os tempos”. Na verdade, um conjunto de memes formatado pelo marketing digital para infectar “o mundo livre”. Usará todo o poder presidencial para que o “movimento” transcenda os quatro anos de seu mandato.

 



 


A ameaça não é só político-institucional. Ela indica imenso retrocesso no já atrasado plano de descarbonização das economias. “Nós temos mais petróleo que a Arábia Saudita, mais que a Rússia, que qualquer país.” Foi o que disse ao falar como vencedor. É falso. Mas vai aumentar a exploração de petróleo. Quando se pede aos países mais ousadia na redução das emissões de gases-estufa, Trump pretende emitir mais.

 


Muitos analistas explicam sua vitória pelos erros de Biden, pela curta exposição de Kamala Harris para ser conhecida e fazer sua mensagem chegar aos eleitores. Os votos que ela obteve desmentem essa hipótese. Trump foi escolha da maioria, pela primeira vez venceu no voto popular. Jovens, mulheres, latinos, negros, imigrantes e seus filhos votaram nele o suficiente para lhe dar a dianteira e bloquear o avanço da oponente, apesar de seu racismo, misoginia e xenofobia.


O voto que o elegeu é diferente. É voto baseado em emoções e não em interesses. O sentimento contrariou os interesses e a realidade material. Os indicadores econômicos são positivos mas, a percepção, o sentimento de conforto econômico é negativo. É certo que a inflação é baixa, mas não houve deflação de preços, eles não caíram. Mas não é razão para derrota tão marcante. Sim, houve machismo e racismo na preferência de muitos eleitores. É parte dos votos tristes que são uma manifestação mais ampla.

 


Tomei emprestada a ideia de François Dubet. Ele fala em seu livro, O tempo das paixões tristes, que elas nascem do aumento e principalmente da mudança na natureza das desigualdades. O sofrimento social provém de uma série de injustiças pessoais, discriminação e desprezo. As desigualdades múltiplas geram uma resposta raivosa, antipolítica, mais do que de mobilização para a política. Sem identificar um responsável direto por suas dores, esse povo é tomado pelo ressentimento.


A extrema-direita sabe explorar esses sentimentos. A esquerda não sabe responder a eles. A direita restaurou-se como extrema-direita e se digitalizou. Com a linguagem das redes explorou os sentimentos tristes, o ressentimento, o medo, a frustração dos sonhos, a indignação com as perdas e com a impassividade das elites. Absorveu a demagogia dos populistas para falar com os novos descamisados. A mentira e o ódio ao outro são parte da semântica política da extrema-direita.

 


A decadência dos partidos do amplo espectro que abriga do socialismo democrático, à social-democracia e ao social liberalismo se deve à incapacidade de reconfigurar suas visões dos problemas estruturais do povo para as novas realidades. Suas bases tradicionais estão se decompondo com a automação e o uso de aprendizado de máquina.


Há novo processo de desconcentração industrial transnacionalizada com a globalização. As bases sociais que esses partidos buscaram mobilizar e representar, antes parte da maioria dos explorados, estão minguando com o desaparecimento das formações sociais que as originaram. Formaram-se novas categorias sociais despossuídas que eles não entendem e cujos interesses não representam. Essas categorias sociais deslocadas pela destruição de suas ocupações tradicionais somam seu descontentamento à indignação dos “por conta própria” que emergem na “nova economia” sem a proteção da seguridade estatal e se sentem esmagados pelos impostos que não lhes trazem benefício tangível. Sentem-se desrepresentadas, encontram mais ressonância na extrema-direita e votam com as emoções que ela sabe estimular.


Falam na falta de memória do eleitor brasileiro. Em toda democracia de massa, a memória eleitoral é curta. O eleitor americano esqueceu a invasão do Capitólio, esqueceu a crise econômica, sua atitude na pandemia e reelegeu Trump.

 
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