Não bastasse a tragédia generalizada que assola a população palestina, patrocinada pelos israelenses e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu transformando as lideranças globais em seus subordinados, o risco da escalada do conflito na região do Oriente Médio se torna realidade com os ataques de drones e mísseis de cruzeiro e balísticos iranianos ao território judeu.
O governo dos EUA, na última sexta-feira, havia anunciado que as tensões se agravavam em ritmo muito acelerado. O elemento desencadeador desse novo cenário desanimador para região foi o ataque israelense ao Consulado do Irã, na Síria, no dia primeiro de abril, o que resultou na morte de sete pessoas, entre elas dois importantes generais do alto escalão do poder iraniano.
Israel não assumiu a responsabilidade por esse ataque, apesar de os indícios mostrarem o contrário. São notórias as contínuas acusações do governo de Israel de que o Irã é uma ameaça à segurança israelense, não só pelo grande potencial bélico, mas também pelo apoio às milícias aliadas, hostis aos judeus, concentradas principalmente no Líbano, no Iêmen e na Síria, com o financiamento e fornecimento
de armas, além auxílio ao Hamas.
A verdade é que as tensões entre Israel e Irã se intensificaram desde a ação armada do Hamas, em 7 de outubro, contra os judeus. Desde a ofensiva do Hamas, a resposta militar de Israel contra os alvos desse adversário foi recorrente, resultando, entre outras consequências, no assassinato de numerosos comandantes do alto escalão iraniano.
Esse ato, associado ao governo de Israel, foi o estopim para um confronto armado entre os dois países, considerados os dois piores inimigos regionais. O Irã ameaçou retaliar esse ataque. Os EUA, como padrão, anunciaram que dariam total apoio a Israel, caso isso se concretizasse, apesar de não deixar claro até que ponto os norte-americanos estariam dispostos a se envolver diretamente nesse conflito.
As previsões começaram a se materializar durante a manhã do último sábado, quando membros da Guarda Revolucionária Islâmica, a poderosa força de defesa iraniana, apreenderam o MSC Aries, um navio porta-contêineres, de bandeira portuguesa, ligado a um judeu sionista, no momento em que fazia a travessia ao longo do Estreito de Ormuz.
Esse estreito, entre os Emirados Árabes Unidos e o Irã, é uma das zonas mais estratégicas do comércio marítimo mundial, que conecta o Golfo Pérsico ao Oceano Índico e por onde trafega parte expressiva dos superpetroleiros que abastecem os mercados internacionais.
Ao analisar a história dos dois países, percebe-se que o ódio entre eles é alimentado há décadas. Mas nem sempre foi assim. A cultura judaico-persa (o Irã é a antiga Pérsia) esteve mais tempo em harmonia que em desarmonia. Os judeus viveram pacificamente nesse território durante séculos.
Quando Israel foi criado (1948), o jovem estado encontrou apoio imediato do governo persa, liderado, na época, pelo Xá Reza Pahlevi, enquanto os países árabes vizinhos o viam como o inimigo a ser expurgado da região. Uma demonstração desse elo é o fato de o Irã ter sido o segundo país muçulmano a reconhecer o estado judeu (1950), depois que a Turquia o fez em 1949.
Pahlevi admirava os judeus e abriu as portas a muitos deles, permitindo que que convivessem de forma confortável e com muito luxo, no Irã do Xá. Ali instalados, os judeus iranianos deram suporte técnico às modernidades que o país vivenciava e colaboraram no desenvolvimento de armas para o governo, que dirigia uma das nações com maior capacidade bélica da região e a maior aliada norte-americana, até
então.
Mesmo sendo o Xá um ditador, isso não impediu as relações cordiais entre as duas nações, com a presença e o apoio dos judeus, que viam ali um local mais amistoso no universo de animosidades permanentes entre os vizinhos árabes. Entretanto, as coisas começaram a mudar desde a ascensão ao poder do Aiatolá Khomeini após a Revolução Iraniana, promovida em 1979.
Após essa ascensão e a ruptura do Irã com os EUA, o ódio do novo líder teocrático iraniano se estendeu a Israel, visto como o grande amigo da odiada superpotência ocidental (o grande satã, nas palavras de Khomeini), em parte expressiva das nações do Oriente Médio. Ainda assim, é importante lembrar que judeus venderam armas ao Irã durante a guerra Irã-Iraque, na década de 1980, num escândalo conhecido com Irã-Contras ou Irã-Gates (alusão ao Watergate, o escândalo que desencadeou a renúncia
do ex-presidente dos EUA, Richard Nixon, em 1972).
Desde então, as relações entre os dois estados foram alimentadas por uma rivalidade crônica, entremeadas com ameaças constantes e incendiárias. O cenário piorou com a questão nuclear iraniana. O desenvolvimento das armas atômicas pelo Irã teve reação negativa imediata de Israel (suspeita-se que os judeus tenham esse armamento), contra o domínio dessa tecnologia por parte do, agora, arqui-inimigo.
Os temores das possibilidades da escalada do conflito se concretizaram durante a noite de sábado para domingo. Uma ofensiva violenta de drones e mísseis iranianos foi realizada contra o território israelense, colocando todo o sistema de defesa em total alerta para evitar efeitos nefastos do bombardeio contra a população judia.
Em um comunicado na rede X (antigo Twitter), o governo do Irã dizia: “Conduzida com base no artigo 51 da carta das Nações Unidas, relativa à autodefesa, a ação militar do Irã respondeu à agressão do regime sionista quanto às nossas instalações diplomáticas em Damasco. O caso pode ser considerado encerrado. No entanto, se o regime Israelita cometer outro erro, a resposta do Irã será consideravelmente mais dura. Este é um conflito entre o Irã e o regime desonesto de Israel, do qual os Estados Unidos
DEVEM FICAR LONGE!, conclui a missão iraniana”.
Os drones demoraram algumas horas para chegar ao espaço israelense. Era esperada uma reação de defesa imediata do governo e aliados (EUA, Grã-Bretanha, França etc.) com todo o esforço tecnológico possível para interceptá-los. Evidentemente, o apoio dos EUA ampliava essa possibilidade. A Jordânia, na sequência da confirmação dos lançamentos das armas iranianas, anunciou que derrubaria qualquer aeronave, incluindo drones, que cruzasse seu espaço aéreo e assim o fez. O Irã afirmou que, se algo assim ocorresse, a Jordânia seria o próximo alvo. É aguardar para ver o que virá.
Segundo o chefe da defesa israelense, foram lançados 120 mísseis e 170 drones contra Israel, e quase todos foram interceptados antes de atingirem as instalações em terra. O sistema de defesa em múltiplas camadas, altamente sofisticado (desenvolvido junto aos EUA) foi bem sucedido, novamente.
Ao que tudo indica, o ataque do Irã foi mais performático que com o intuito real de guerra. “Foi uma retaliação lenta, totalmente telegrafada e, em última análise, malsucedida” como disse com Michael Singh, um ex-diretor sênior para assuntos do Oriente Médio, no Conselho de Segurança dos EUA, ao Wall Street Journal (WSJ).
Todavia, o arsenal de drones, mísseis de cruzeiro e mísseis balísticos do Irã é uma preocupação antiga do Ocidente e de Israel. O Irã é o país mais bem armado da região. O governo israelense afirma que é capaz de se defender, com o seu sistema de defesa aérea multicamadas. Mas as autoridades afirmam que o sucesso desse sistema depende da forma como a agressão é realizada.
Se os ataques fossem prolongados, poderia comprometer a quantidade de misseis necessária para se defender. Israel está desenvolvendo um novo sistema chamado Iron Beam, que usa laser para abater os projéteis. São as armas de energia, uma das mais modernas da atualidade, que podem resolver as limitações da falta de munição.
Mas não está claro se esse equipamento foi usado no conflito contra o Irã. Os israelenses se tornaram uma potência na indústria de sistemas de defesa aérea, fazendo do setor industrial bélico um dos mais bem sucedidos e lucrativos do país.
É válido afirmar que Israel pode se defender de ataques isolados ou de pequenos e pouco numerosos drones. Mas uma ofensiva com um número expressivo de armamentos pode saturar o sistema de defesa e potencialmente expor Israel a uma violenta represália dos agressores, como no caso dos iranianos. É certo que Israel nunca foi exposto a essa escala de ataques.
Se os efeitos sobre judeus fossem drásticos, a resposta israelita seria severa e o risco de uma guerra maior no Oriente Médio aumentaria significativamente. Entretanto, as informações iniciais foram de sucesso no combate aos equipamentos lançados contra o território. Não há clareza, até o presente momento, de como será a reação de Netanyahu a essa ofensiva, principalmente após os EUA, condenarem o ataque, mas afirmarem que não estão dispostos a enfrentar um confronto direto com o Irã.
Espera-se que o poder de dissuasão de Biden junto a Netanyahu possa ser mais eficiente que junto a Teerã, uma vez que suas ameaças não foram capazes de conter o ataque da terra dos aiatolás.
É muito importante evidenciar que a geografia iraniana é bastante diferente da do entorno. O território é caracterizado por um relevo muito montanhoso, resultante dos movimentos de placas tectônicas, de difícil acesso, e com um clima desértico bastante hostil. A geografia é inóspita, e isso protegeu o país ao longo do tempo, de uma agressão mais violenta dos inimigos, que o acusam continuamente das mais diversas
formas de violação.
Somente ataques aéreos convencionais, dificilmente, o dominariam e colocar exército em terra pode ser uma recriação da história da guerra vietnamita ou mesmo afegã, dos tempos recentes, locais onde as caraterísticas geográficas físicas tiveram um papel relevante contra e desfavorável ao agressor. Isso deve ser considerado em qualquer ação que se pretenda contra o Irã. “A geografia, isso serve em primeiro lugar, para fazer a guerra”, já dizia Yves Lacoste.
Israel provocou deliberadamente esse confronto com o ataque ao consulado iraniano, uma instalação diplomática, na Síria. Conhecia os riscos e ainda assim o fez. Expôs a população israelense e norte-americana presente no país ao ataque de um inimigo muito bem armado.
O Irã não tinha interesse no envolvimento direto nesse conflito, mas, provocado, a situação se modificou. Não responder poderia sinalizar fraqueza e pouca credibilidade à sua capacidade de defesa tanto interna quanto externamente. A justificativa na rede X demonstra claramente a postura adotada.
Israel sabia que o cenário era crítico e havia se preparado para uma resposta iraniana.
Neste sábado, anunciou o fechamento das escolas em todo o país até a terça-feira e limitou o tamanho das reuniões até 1000 pessoas, uma forma de conter as manifestações contra o seu próprio governo (decisão ignorada pelos antigovernistas, que se reuniram em Telaviv, mesmo após as novas diretrizes).
Ironicamente, o governo de Israel, que ignora toda a decisão do Conselho de Segurança da ONU, o convocou na noite de sábado. Os israelenses solicitam que o órgão condene os ataques sem precedentes de mísseis e drones iranianos e liste a Guarda Revolucionária Iraniana como um grupo terrorista. Há fortes sinais de hipocrisia nesse ato.
EUA, França e Inglaterra são aliados incondicionais de Israel e devem atender ao pedido, posição que deverá ser similar à da Rússia, apesar das relações com o Irã. Não pensem que Putin é inimigo de Israel. Não o é. Qualquer informação contrária é fake news. A situação mais emblemática é da China. Os chineses têm grandes negócios com os israelenses, envolvendo portos e tecnologias, mas são um forte aliado do Irã. Seu papel como intermediador pode ser crucial nesse momento. Há que aguardar as
próximas ações.
O G7, o grupo dos sete países mais desenvolvidos, reunidos em uma videoconferência, condenaram o ataque e reforçaram unanimemente o apoio a Israel, em caso de uma nova investida iraniana.
Espera-se que o ato de Netanyahu não seja uma cortina de fumaça para atacar Rafah, no sul de Gaza, onde há amontoado, mais de 1,5 milhão de refugiados, e intensificar a violência na Cisjordânia. A tensão com o Irã pode ser a justificativa perfeita, além de validá-lo no poder, no momento em que aumentam as manifestações de milhares de judeus, contrários ao próprio governo, em Israel. Salvar a sua pele pode ser o elemento mais importante nesse momento e é uma prática recorrente nas relações
internacionais. Esse é um dos lados obscuros da geopolítica mundial.