No conto “Das memórias de um homem sensato”, do russo Vladímir Odóievski, somos conduzidos a uma reflexão profunda sobre o que é considerado “normal”. O protagonista, inicialmente consumido por delírios alquímicos, é trazido de volta à suposta normalidade por seu amigo e por médicos.
No entanto, após algum tempo, quando seu amigo o visita, o protagonista não o reconhece como herói, como fazem os outros da casa. Ele revela que não está agradecido pela pretensa cura, pois seu amigo havia pressuposto que o que o fazia feliz seria o mesmo que o satisfaria. Segundo o protagonista, seu amigo tinha agido como um marceneiro que é contratado para fazer uma caixa para guardar valiosos instrumentos, mas que, ao tomar as medidas erradas, acaba por danificar os objetos no intuito de fazê-los caber na caixa projetada erroneamente.
A metáfora da caixa e dos valiosos instrumentos nos lembra que, em nossa ânsia para nos encaixarmos naquilo que é considerado normal, podemos nos submeter a sacrifícios e danos irreparáveis. A ideia de que a caixa deve se adaptar aos instrumentos, e não o contrário, nos convida a reconsiderar nossas ações e escolhas. Quantas vezes nos encontramos tentando forçar nossa personalidade, desejos e identidade em moldes que não nos cabem?
O preconceito, em muitos casos, deriva desse desejo de nos encaixarmos nas caixas preestabelecidas pela sociedade. A pressão para ser como os outros muitas vezes nos leva a ignorar ou até mesmo reprimir nossa singularidade. Além disso, a busca pela normalidade pode nos fazer julgar e discriminar aqueles que não se ajustam ao padrão, criando barreiras e promovendo a exclusão.
Quando somos jovens, é comum nos moldarmos para caber nas caixas que a sociedade nos oferece. Crescemos acreditando que essa é a única maneira de sermos aceitos e amados. No entanto, à medida que amadurecemos, começamos a perceber que essa busca pela normalidade pode ser um fardo pesado demais. Começamos a questionar por que devemos nos conformar com as expectativas externas que muitas vezes não refletem quem realmente somos.
O processo de autoacolhimento e autoaceitação é uma jornada desafiadora, mas essencial. À medida que reconhecemos os danos que causamos a nós mesmos e aos outros ao nos forçarmos a nos adaptar em caixas estranhas, podemos começar a reparar os estragos. Conforme nos libertamos das amarras da conformidade, construímos novas caixas, essas sim, feitas sob medida para nossa verdadeira identidade.
É importante entendermos que a normalidade é uma ilusão. Cada pessoa é única, com suas próprias experiências, paixões e peculiaridades. Em vez de buscarmos a normalidade, devemos abraçar nossa autenticidade. Devemos celebrar nossas diferenças e reconhecer que a verdadeira riqueza reside na diversidade humana.
A mensagem do conto de Odóievski é clara: não sacrifique sua essência para se encaixar em uma caixa que é sua! Não devemos nos submeter a uma normalidade imposta. Em vez disso, devemos brindar nossa singularidade, construída diuturnamente por nós mesmos. Reconhecer que não somos caixas pré-fabricadas, mas sim valiosos instrumentos, é um lembrete poderoso de que devemos buscar nossos próprios caminhos e não aqueles definidos pelos outros.