Por quase 78 anos de vida aquele homem esteve escondido de si e dos outros. Falava pouco, a não ser quando contava suas aventuras do passado; e nunca foi de convivência. Via a família reunida, ali permanecia por não mais que vinte ou trinta minutos, já logo se entediava e saía de fininho para que ninguém percebesse sua ausência. Não foram poucas as vezes que no Natal, família toda reunida, ele ia para a sala de televisão e ali permanecia sozinho até o momento da reza em torno da mesa.

Aconteceu de a doença tomar-lhe o corpo e o homem taciturno e distante de antes se transformou em alguém ávido pela presença dos seus, inquirindo constantemente sobre a duração das visitas de seus filhos e ansioso por saber quando retornariam. Perguntado agora onde gostaria de ficar na casa, já que está em uma cadeira de rodas, responde placidamente que é do lado de onde todos forem ficar.

A decisão de abandonar suas rotinas anteriores, como a ginástica e as rezas, agora consideradas por ele como uma perda de tempo, marcou uma mudança imensa em seu comportamento. O valor que ele dava antes para essas atividades foi substituído por um desejo profundo de conviver exclusivamente com os seus entes queridos. Essa transformação, nos derradeiros momentos da vida, de alguém que antes se isolava, para alguém que encontra na convivência a essência da sua existência, suscita algumas reflexões.



Apesar de não fazer qualquer comentário, há momentos em que percebo nele uma consciência aguda de sua finitude. Parece que, ao reconhecer não ter sido uma presença significativa como pai e marido, ele busca agora compensar essa lacuna com uma presença repleta de amor e afeição. Interessante notar como a natureza da sua presença mudou: antes imponente e até intimidadora, transformou-se em algo terno e acolhedor, atraindo todos para perto dele.

Essa metamorfose me fez refletir sobre a fluidez das prioridades humanas ao longo da vida. Muitas vezes, resistimos às mudanças até que somos confrontados com a inevitabilidade da nossa morte. Nesse estágio, parece que uma claridade emerge e permite distinguir com precisão o que realmente importa. A vida, frequentemente consumida por preocupações efêmeras e valores distorcidos, pode revelar sua preciosidade quando confrontada com a finitude.

Kierkegaard e Heidegger ponderam sobre como a angústia e consciência da morte podem nos impulsionar a buscar significado e autenticidade em nossas vidas. No caso do nosso senhor, a iminente proximidade da morte serviu como um catalisador para um despertar profundo sobre a importância do agora, do momento presente, e da conexão genuína com os outros, o que sempre procurou evitar durante a vida.

Ao confrontar sua própria finitude, nosso senhor foi impelido a reavaliar sua vida, descartando o que não era essencial em favor de uma existência mais significativa. Ao aceitar a vulnerabilidade de sua condição, ele percebeu que somente através do reconhecimento da sua mortalidade é que poderia começar a viver de modo a se direcionar segundo seus valores e convicções mais íntimas.

Creio que esse relato deve nos servir como um farol, nos lembrando o quanto adiamos viver plenamente por medo, orgulho ou simples negligência das relações que verdadeiramente dão cor e significado à nossa existência. Ele é um convite para refletirmos sobre como estamos vivendo nossas próprias vidas e sobre as escolhas que estamos fazendo. 

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