
"Você está conservada"
Essa frase reproduz uma cultura que valoriza a juventude e associa envelhecimento a algo feio e indesejável
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A linguagem carrega em si a possibilidade de descrever e significar o mundo. É por meio da linguagem que criamos ciência, arte, poesia e toda a sorte de invenções que fazem da vida do ser humano algo possível de ser expresso por meio da cultura. Do mesmo modo que a linguagem pode auxiliar na construção ou reforço de ideais comunitários compartilhados, ela pode ser fator determinante para o aprofundamento de preconceitos.
Quando aceitamos e usamos em nossas práticas diárias de linguagem, expressões ou insinuações preconceituosas, o que estamos fazendo na verdade é reforçar o preconceito que de fato já existe na sociedade. Por exemplo, se uma amiga me pede para que avalie sua roupa e eu digo que ela não tem mais idade para usar aquilo, o que estou afirmando implicitamente é que ela é velha demais para usar a roupa que deseja, como se existisse um tempo em que fosse preciso deixar de ser quem se é, ou de usar o que se quer.
O que muitas vezes esquecemos em nossas falas cotidianas é que, quando nos expressamos, estamos atuando socialmente, e que tal atuação pode ter consequências reais na vida das pessoas. Muitas das ações etaristas são praticadas por pessoas que às vezes nem imaginam que estão sendo preconceituosas. Tem uma afirmação que eu acho bastante interessante, pois ela vem como uma espécie de elogio, mas que, em verdade, reproduz uma cultura que valoriza a juventude e associa envelhecimento a algo feio e indesejável.
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Estou me referindo à clássica “você não aparenta a idade que tem”. Acredito que essa afirmativa é problemática em vários sentidos. O primeiro deles diz respeito ao fato de não sabermos os parâmetros pelos quais estamos sendo avaliados, porque se for pelo das personalidades de Hollywood, já digo de antemão que quase todos estão velhos demais! O segundo, e claro, bem mais problemático, diz respeito ao fato de o “elogio” estar carregado de preconceito, pois, ainda que implicitamente, a expressão associa não parecer ter a idade que se tem a algo positivo, o que faz com que parecer ter a idade que se tem, se torne algo negativo.
A aparentemente elogiosa expressão – e muitas outras que repetimos diariamente sem refletir – sustenta uma lógica social que valoriza a juventude como sinônimo de beleza, saúde e vigor, ao mesmo tempo em que marginaliza o envelhecimento. Uma cultura que oprime homens e mulheres a se encaixarem em padrões que não foram feitos para pessoas reais. Assim, ainda que não percebamos, por meio das nossas falas cotidianas, acabamos transformando o envelhecimento, que é parte natural da vida, em uma ocorrência que precisa ser disfarçada, escondida ou, pior, evitada ou medicalizada.
Às vezes, é preciso refletir sobre o que se esconde por trás daquilo que dizemos em nosso cotidiano. Analisar o que nossas palavras sustentam e denunciam, ainda que não de modo intencional. Quando “elogiamos” alguém dizendo que a pessoa está “conservada”, estamos de fato reconhecendo algo bonito, ou apenas nos alinhando a uma cultura que enxerga o envelhecimento como decadência?
Como dito, a linguagem é performativa, ou seja, ela não apenas diz o mundo, mas também o constrói. A cada vez que repetimos “frases feitas” sem pensar criticamente sobre elas, estamos naturalizando um modo de vida que valoriza a aparência em detrimento da experiência, a juventude em oposição à sabedoria, a promessa do eterno em vez da finitude que nos humaniza e nos torna iguais.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.