Paul surge, Paul some. Paul em preto e branco, Paul em cores psicodélicas, Paul em ritmo de disco music, Paul no topo de uma torre. As projeções nos telões laterais do palco aquecem o público para a apresentação de um Beatle. Mas não nos preparam para a aparição de outro Beatle. Vem com a voz de John Lennon um dos momentos mais arrepiantes do novo show de Paul McCartney. Dura menos de cinco minutos. Mas permanece na memória dos que assistem à nova turnê, como as mais de 60 mil pessoas que estiveram na última quinta-feira no estádio Mané Garrincha, em Brasília, no primeiro show no Brasil em 2023.
“Got back” é a primeira turnê mundial de McCartney depois do assombroso documentário “The Beatles: Get back” (2021), de Peter Jackson. Ao trazer à tona imagens preciosas do caos criativo da última fase da banda, o diretor de “O senhor dos anéis” jogou luz também no papel do baixista naquele momento.
Criando clássicos, demonstrando cumplicidade nas jams com os outros integrantes, conduzindo as gravações no rumo que desejava e provocando algumas tensões, especialmente com George Harrison. Só que não há mais banda e dois Beatles não estão mais entre nós. Paul pode, então, fazer tudo ao seu jeito, inclusive determinar as formas de incorporar George e John ao seu show. Ele comanda. E se diverte com isso.
Dez anos atrás, a turnê “Out there” passou pelo Mineirão e escutamos pela primeira vez ao vivo composições dos Beatles como “Your mother should know” e “Lovely Rita”. “Got back” não apresenta, ao menos, até agora, grandes surpresas no repertório. A mudança geralmente se restringe à abertura, alternada entre “Can’t buy me love” e “A hard day’s night”. Como serão dois shows consecutivos na Arena MRV, talvez haja outras alterações. Se não houver, não fará tanta diferença. Será mais um dia na vida de Paul McCartney em sua missão de oferecer entretenimento & emoção aos fãs. Gettin’ better all the time.
Em quase três horas, ele arrisca algumas frases em português, faz mímicas e caretas, finge se surpreender com as explosões de “Live and let die”, divide a plateia em corais feminino e masculino, oferece momentos de protagonismo para os músicos que o acompanham, como a dancinha do baterista Abe Laboriel Jr. em “Dance tonight”. Brinca com a voz e se diverte com a repetição de versos na parte final de “Let’Em in”. Oferece aos beatlemaníacos a chance de escutar músicas menos consagradas, como “She’s a woman” e “I’ve just seen a face”. A voz rateia em uma das canções recentes, “New”, e obviamente ele não se esgoela como nas gravações originais do peso pioneiro de “Helter Skelter” e dos dilacerantes versos apaixonados de “Maybe I’m amazed”. E sempre ressalta a afirmação que faz após “Letting go”: “I’m here!”. Sim, Paul McCartney está aqui no Brasil. E, por alguns minutos, John também.
O dueto de “I’ve got a feeling”, com a imagem de Lennon captada no último show da banda, em 1969, é o ponto alto da turnê “Got back”. Fica estabelecida a conexão direta com o documentário de Jackson e se percebe que o filme revelou novos ângulos da dinâmica da banda até para o próprio Paul. É um retorno ao passado, acrescido de outro ponto de vista – o de John, exuberante, sorridente, voz cristalina no contraste perfeito com o tom grave do baixista. Um em cada telão, os dois juntos de novo. Ambos cheios de vida.
Nascido em junho de 1942 em Liverpool, o inglês Sir James Paul McCartney tem 81 anos, cinco filhos, quatro netos e fortuna estimada em US$ 1,2 bilhão. Por que, em vez de ficar em casa, ele ainda cai na estrada para fazer shows com quase 40 músicas, antecedidos por uma passagem de som que costuma passar dos 60 minutos?
Talvez a resposta esteja em um dos versos de “Now and then”, divulgada no mês passado como a “última música dos Beatles” (e ignorada na apresentação): “It’s all because of you” (“É tudo por causa de você”). Por causa do que ele fez com John, George, Ringo. Por causa de Linda e pelos Wings. Para celebrar a trajetória única na música mundial e compartilhar essa história com os fãs de diversas gerações. Para promover uma volta, ou melhor, um drible no tempo, como fez no estádio que leva o nome do maior driblador da história do futebol. Show de bola.