Três pontos de vista redefinem “Monster”, de Hirokazu Kore-eda, ao longo da narrativa. O artifício é manjado, e célebre por outro filme japonês, “Rashomon”, de Akira Kurosawa. Mas, aqui, ainda que as diferentes histórias sejam complementares, é difícil entender para onde ela caminha.
A cada passo, o filme tromba no thriller, no terror e no melodrama. Se tudo parece fora de lugar para um filme de Kore-eda, que levou a Palma de Ouro por “Assunto de família”, (2018), muito se deve ao roteiro de Yuji Sakamoto, premiado neste ano em Cannes.
É raro ver um filme em que Kore-eda esteja apenas na cadeira de diretor, não fazia isso desde 1995, com “A luz da ilusão”. É possível entrever o mestre do suspense Alfred Hitchcock, com um bom toque de maneirismo, neste “Monster”, centrado na relação entre dois adolescentes, Minato e Yori, colegas de sala, que começam a ter comportamentos estranhos no dia a dia. Só entenderemos ao fim o que há entre eles, se são amigos ou desafetos, como o bullying no colégio afeta o comportamento deles.
Primeiro, veremos o mundo pelos olhos da mãe de Minato, vivida por Sakura Ando, espantada pelo filho chegar em casa sujo, machucado, mais quieto que o comum. Começa a dizer que seu cérebro foi trocado pelo de um porco. A horas tantas, acusa um professor pelos maus tratos. Sabemos que ela é uma jovem viúva, que trabalha e cuida sozinha do menino.
Ela vai ao colégio e todos os funcionários, roboticamente, dizem que a situação está sendo apurada e agradecem os comentários diante de uma mãe em choque. Depois, o tal professor será forçado a se curvar e pedir desculpas, mas sem nenhuma explicação sobre o caso. Será mesmo culpado? O que essa mãe não vê?
Pelo humor, o filme evidencia uma faceta particular do Japão, suas tradições e como seu teatro social esconde feridas. A partir daí, o espectador será confrontado com suas impressões daquele mundo e de suas regras, até chegar num comentário universal sobre como encaramos o que é estranho, o outro. Ou ainda, os monstros na nossa frente, que não raro espelham o que há dentro de nós.
“Monster” mira a verdade para além das aparências. “Não importa o que de fato aconteceu”, diz uma personagem. Cada personagem, por mais monstruoso que pareça, esconde algo capaz de reorganizar a história. Todos, de certa forma, têm um arco de redenção.
A diretora do colégio, papel de Yuko Tanaka, vai de cínica a amargurada e tenra, quando descobrimos a culpa que carrega. Ela é um dos elos para a segunda parte, quando seguimos o professor denunciado, papel de Eita Nagayama.
Mas a história não segue do mesmo ponto. Se confunde o espectador menos atento, também é uma saudável recusa ao didatismo. Se a primeira parte começava com um incêndio numa boate da pequena cidade, essa vai para a intimidade do docente e suas dificuldades com as mulheres e o dinheiro.
Nesse sentido, em vez de esmiuçar um acontecimento a partir de vários narradores, “Monster” se lança numa vertigem de personagens e minúcias que se desdobram num complexo mosaico.
“Monster” tem a última trilha de cinema de Ryuichi Sakamoto, morto em abril, com composições originais ao lado de faixas do álbum “12”, seu último disco lançado em vida. É a sombra que envolve tudo com a luz da melancolia.