Enrique Vila-Matas diz que

Enrique Vila-Matas escreveu "Montevidéu" na época em que lidou com um transplante renal

crédito: Hector Guerrero/AFP/2015

Um homem não identificado, com aspirações literárias, repassa sua vida sem se preocupar com a opinião alheia. Conta sobre sua ida a Paris, com a anacrônica intenção de se transformar em um escritor dos anos 1920, estilo “geração perdida”, e a temporada de dois anos em que trabalhou “exclusivamente como vendedor de drogas” na Cidade Luz. Seu maior dilema, contudo, é com o que ele define como “doença da literatura” – o fantasma do bloqueio criativo que lhe assombra há algum tempo.

Trata-se do narrador-personagem de “Montevidéu”, romance que o espanhol Enrique Vila-Matas escreveu em 2022 e que chega agora ao Brasil. Onírico e beirando o surrealismo, gênero que Vila-Matas nega adotar, a obra refaz os caminhos que o narrador-personagem tomou no intuito de sair de seu bloqueio, tendo a trama concentrada na capital uruguaia.

Obcecado com o conto “A porta condenada”, de Julio Cortázar, o narrador-personagem de Vila-Matas vai até o local onde se passa a história do argentino para ver se consegue algum tipo de revelação literária. Seu encontro consigo mesmo, no entanto, só ocorre quando retorna a Paris, quando uma amiga artista o convida a participar de uma espécie de performance que ela fará.

“Se você pensar bem, perder tempo é o tema central da maior parte da literatura moderna. Leopold Bloom [de “Ulisses”, de James Joyce] passa o dia inteiro perdendo tempo; Marcel Proust, durante toda a sua vida”

Enrique Vila-Matas, escritor

Vila-Matas contou ao Estado de Minas como surgiu a ideia de escrever “Montevidéu”, o contexto no qual escreveu o romance (ele tinha acabado de receber um transplante de rim da esposa), sua rotina de escrever “como um louco” e a possibilidade de o bairro de Higienópolis, em São Paulo, ser cenário de algum próximo romance seu.

O que te motivou a escrever “Montevidéu”?

O propósito de abrir a porta para algo novo, que, se possível, tinha um ponto assustador. Mas sempre tendo em mente que o que se escreve com terror se revela mais tarde como pura e simples verdade.

Você escreveu o livro em uma situação de saúde delicada - havia acabado de receber um transplante. Como essa experiência repercutiu no livro?

Escrevi o rascunho do livro antes do transplante renal (doação da minha esposa, Paula de Parma). Ao voltar para casa após o transplante, tinha um “Montevidéu” só para corrigir. Ao corrigir, percebi que minha mente funcionava com liberdade criativa quase ilimitada.

Em vez de descrever uma luta incansável com a impossibilidade de escrever – um dos temas centrais do meu trabalho – aconteceu o contrário. Foi uma festa em crescendo. À medida que minha recuperação avançou, o livro melhorou ao mesmo tempo. Junto com “O mal de Montano”, é um dos dois melhores que escrevi.

O conto “A porta condenada”, de Cortázar, tem um papel fundamental em “Montevidéu”. O que te atrai nesse conto do Cortázar?

Beatriz Sarlo [crítica literária argentina] apontou aquela porta condenada como “o lugar exato onde irrompeu o fantástico na história de Cortázar”. Isso reforçou meu interesse em um dia viajar para Montevidéu e ficar diante daquele “exato lugar”.

E até anunciei escrevendo num artigo no “El País” que, um dia, iria a Montevidéu procurar o quarto no segundo andar do Hotel Cervantes e que completaria uma verdadeira viagem ao lugar exato do fantástico, “talvez o lugar exato da estranheza”.

Você chegou a se hospedar no Hotel Cervantes?

Sim, e é assim que é explicado no livro. A grande crítica francesa Tiphaine Samoyault também acabou de ficar por lá e, antes de apresentar meu livro em Paris, fez uma viagem para viver lá sua própria experiência.

O quê de Enrique Vila-Matas está no narrador-personagem de “Montevidéu”?

Um cara que, depois do transplante, agora escreve feito um louco, quer dizer, escreve incessantemente. E, além disso, voltou ao convívio social, sai e conhece gente interessante, e isso impulsiona ideias e gera outros projetos.

Tudo encontra seu caminho de volta, até mesmo, principalmente, o tempo perdido. Se você pensar bem, perder tempo é o tema central da maior parte da literatura moderna. Leopold Bloom [protagonista de “Ulisses”, de James Joyce] passa o dia inteiro perdendo tempo; Marcel Proust, durante toda a sua vida.

Você diz que o que é encenado em seus livros não é um enredo tramado, e sim você mesmo. E que cada obra sua é a continuação desse trabalho. Vila-Matas, portanto, é um homem de muitas personalidades ou é alguém que está sempre mudando?

Dizem que sou um homem quase idêntico ao que escrevo.

Seus livros trazem sempre ficção e ensaio. Como faz para alcançar essa linha tênue de modo a não fazer uma história só de ficção ou um mero ensaio?

É um trabalho de longa data. No final, tornou-se, penso eu, uma marca da casa. Como o signo de “O Zorro”.

Desde a década de 1970, você lança praticamente um livro por ano. Imagino que, em algum momento, você teve algum bloqueio criativo? Como lida com isso?

Escrever sobre o bloqueio de escritor de alguém.

Já vi classificarem sua obra como surrealista. O que você acha disso?

Não tenho nada de surrealista. É um erro que alguns às vezes cometem. Basta ler qualquer um dos meus livros para ver que aqueles que me descrevem desta forma estão errados.

Voltando a “Montevidéu”, há citações a Clarice Lispector e Drummond. Dois brasileiros - embora Clarice não tenha nascido aqui, viveu a vida inteira no Brasil. Também há menções ao Rio de Janeiro. Poderemos ver alguma cidade brasileira como cenário de uma próxima história sua?

Uma vez eu estava com Higienópolis em vista, em São Paulo. E tudo porque naquele bairro em frente ao hotel onde eu estava vi – nunca mais o vi pessoalmente – Werner Herzog. Dois segundos. Eu o vi parar um táxi. Interpretei isso como um sinal de alguma coisa, mas ainda não descobri o quê.

“MONTEVIDÉU”
• Enrique Vila-Matas
• Tradução: Júlio Pimentel Pinto
• Companhia das Letras (240 págs.)
• R$ 99,90