Neta e avó simbolizam as descobertas da infância e as despedidas da maturidade -  (crédito: Juliana Monteiro/divulgação)

Neta e avó simbolizam as descobertas da infância e as despedidas da maturidade

crédito: Juliana Monteiro/divulgação

Uma sequência de fotos que, se passadas com rapidez como um flipbook, cria a imagem em movimento de uma senhora indo para o mar, enquanto a garotinha sai das águas em direção à câmera. Essas são as primeiras 75 páginas de “Fronteiras visíveis”, livro que retoma a parceria da fotógrafa Juliana Monteiro com o escritor João Anzanello Carrascoza. Em 2017, os dois lançaram “Catálogo de perdas”. O novo trabalho traz 70 fotos de Juliana e 14 contos de Carrascoza.

Não se trata, contudo, de um catálogo de fotos “ilustrado” por textos de Carrascoza, ou de um livro de contos com imagens capturadas por Juliana. “Fronteiras visíveis” é diferente, como se fosse duas obras – três, caso se considere o flipbook como outra narrativa. Obras distintas, mas que conversam entre si devido à sua temática.

 

As imagens já indicam, logo no início, que o ciclo da vida, em perpétuo movimento feito um uróboro de vidas e mortes, é o tema central. É como se as fotos mostrassem ao leitor que a mesma água que recebe a idosa oferece a criança de volta.

Avó e neta na praia em foto desfocada

Imagens deliberadamente desfocadas de idosa e criança remetem à passagem do tempo

Juliana Monteiro/divulgação

 

Sem foco

As imagens não são nítidas. Foram feitas com câmera analógica, em preto e branco, sem foco e com uma espécie de sujeira na tela. Dessa forma, a fotógrafa pretende mostrar que a vida nunca é translúcida e não há possibilidade de higienizá-la.

“Assim como a palavra é incapaz de dizer o que sentimos, a fotografia é incapaz de reproduzir o que vivemos”, diz Juliana. “Fotografia é texto, é criação, é construção do dizer. Precisa da referência de mundo para existir, mas se reconfigura a cada encontro com o leitor e com as suas fissuras”, acrescenta.

As duas mulheres fotografadas são a avó e a filha de Juliana. “Elas se transformam em marcos temporais, em personagens que demarcam as fronteiras da vida: a infância e o tempo de descobertas, a maturidade e o tempo de despedidas”, explica.

Marcos temporais também guiam as histórias de Carrascoza. Não à toa, os contos surgem em duplas, um sempre com contornos solares; o outro mais obscuro, não linear.

“Obviamente, não é um ‘O jogo da amarelinha’, mas tem a ideia de ondas”, afirma o escritor, referindo-se ao livro de Julio Cortázar. “E essas ondas, quando se misturam, formam o movimento da vida”.

A trama importa menos do que as relações entre os personagens. A caminhada que pai e filho fazem pela rua não significaria nada, caso o autor não descrevesse com riqueza de detalhes o amor que um nutre pelo outro.

Do mesmo modo, a solidão do personagem dentro de casa não teria sentido, não fossem as boas recordações que ele tem do pai. A simples cena do alegre reencontro de três irmãos idosos ganha contornos dramáticos quando o autor sugere que aquela pode ser a última reunião deles.

Há episódios trágicos, como a memória de uma mulher sobre o abuso sofrido de maneira torpe durante a guerra. Ou a imensa dor do pai que ao levar o filho para viajar com os colegas, não sabe que o está conduzindo até a morte.

“A maior parte dos contos, sem dúvida, está focada na morte. Mas por quê? Porque uma outra parte dos contos é a vida. São sempre duas fronteiras”, explica Carrascoza. “É um pouco o movimento da própria vida. Um corte é a nossa entrada nela, o outro é a nossa saída. Na verdade, nós seguimos nesse meio, que é a duração dela.”

Mesmo nas histórias mais trágicas, é a vida – mais especificamente, como ela é vivida – o que importa para Carrascoza. “É uma forma de lembrar que até a morte chegar, estamos desfrutando de estar aqui”, diz.

“Fronteiras visíveis” reúne fragmentos de descobertas e desencantos. Ou, como preferem dizer os autores, fronteiras entre descobertas e desencantos. Fronteiras essas que, um dia, todos deverão atravessar.

Relações partidas

“Catálogo de perdas”, lançado por Juliana Monteiro e João Anzanello Carrascoza em 2017, foi inspirado no Museu das Relações Partidas, que fica em Zagreb, na Croácia.

Exposições temporárias lá realizadas reúnem relatos e objetos que simbolizam relações partidas, enviados por pessoas do mundo inteiro. O livro traz imagens e textos sobre itens que escondem em si a memória de alguma ruptura.

“FRONTEIRAS VISÍVEIS”


• De Juliana Monteiro e João Anzanello Carrascoza
• Maralto
• 184 páginas
• R$ 49,90