Thierry Frémaux aguarda a equipe do filme

Thierry Frémaux aguarda a equipe do filme "Les filles D’olfa" subir a escadaria do Palácio dos Festivais, para a sessão oficial do longa, em maio passado

crédito:  Antonin THUILLIER / AFP

Você imagina que o smoking, com uma gravata borboleta impecavelmente no lugar, é a “segunda pele” do diretor do Festival de Cannes, que a cada ano espera os concorrentes à Palma de Ouro no topo da escadaria do Palácio dos Festivais, coberta pelo tapete vermelho, o que eleva a pompa dessa circunstância.

Você imagina errado. Ao menos no caso de Thierry Frémaux, que ocupa esse posto desde 2007 – e trabalha no festival de cinema mais glamouroso do planeta desde 2004 –, o quimono branco é o traje que melhor traduz sua personalidade. Cinéfilo que trocou o tatame pela dedicação exclusiva à sétima arte, ele trata de sua relação com o esporte em “Judoca”.

Recentemente lançado no Brasil pela Fósforo, o livro tem orelha assinada por Walter Salles, diretor que já esteve em Cannes tanto em competição pela Palma de Ouro – com “Diários de motocicleta” (2004), “Linha de passe” (codirigido com Daniela Thomas, 2008) e “Na estrada” (2012) – quanto no júri – em 2002, ano em que “O pianista”, de Roman Polanski, venceu.

“O autor se alia aos pensadores da cultura cujos interesses transcenderam suas formas imediatas de expressão”, escreve Walter Salles.

Espécie de biografia conjunta de seu autor e do judô, “Judoca” revê a infância de Thierry Frémaux em Lyon, onde nasceu; a descoberta do judô, o encantamento com esse esporte, com a língua e a cultura japonesas e, concomitantemente, o contato, no dojô, com um núcleo externo à sua família que lhe dá pela primeira vez a sensação de ser alguém no mundo.

O livro costura em paralelo a história de Frémaux no esporte (desde o primeiro treino até se tornar professor) com seu interesse crescente pelo cinema (outra paixão), tendo como pano de fundo a mudança da paisagem urbana de Lyon.

Ele também recua no tempo para contar a respeito do surgimento do judô, com destaque para a biografia de Jigoro Kano (1860-1938), seu criador, a chegada do esporte na Europa, sua disseminação pela França e as transformações por que passou para atender a interesses como o das transmissões televisivas das lutas, que levaram à adoção de quimonos azuis, por exemplo.

São frequentes as comparações de Frémaux entre o cinema e o esporte. Afinal, como ele afirmou em entrevista ao Estado de Minas, “no esporte há grandes astros, assim como no cinema há grandes astros. No esporte há tragédias, assim como as tragédias estão no cinema. Eles unem as massas e provocam o mesmo tipo de paixão. Antes de conhecer de cor toda a filmografia de Orson Welles, eu conheci a carreira de Pelé”.

 “Na história do cinema há muitos heróis que demonstram isso. Um herói que cai é mais interessante do que um herói que triunfa; a derrota é mais interessante do que a vitória; aprendemos mais com o fracasso do que com o triunfo”

Thierry Frémaux, diretor do Festival de Cannes


A origem de “Judoca” está num artigo que o autor escreveu para uma revista sobre “A saga do judô” (1943), filme de Akira Kurosawa (1910-1988), movido pelo fato de ter achado “extraordinário que o primeiro filme do maior cineasta japonês seja sobre o judô”. O editor achou que havia assunto para bem mais que um artigo. E havia.

Em “Judoca”, apenas um cineasta ganha de Frémaux um capítulo exclusivo. Num “entreato”, como ele define, o autor suspende a narrativa para descrever a viagem que fez a Los Angeles, indo ao encontro de Quentin Tarantino, quando o diretor norte-americano concluía a montagem de “Era uma vez em… Hollywood”.


“Como costuma acontecer, eu vi o filme antes de todo mundo. Eu estava começando a escrever o livro sobre a minha juventude e me dei conta de que ‘Era uma vez em… Hollywood’ era, antes de tudo, um filme sobre a infância e a juventude de Tarantino, um filme no qual ele explica como sua cidade construiu sua identidade, e eu quis falar disso, não analisar o filme por meio dos personagens de Brad Pitt e Leonardo Di Caprio, mas pela perspectiva de que Tarantino também quis falar de sua infância”, afirma.

Frémaux esteve no Brasil no início deste mês, para divulgar seu livro e também para fazer uma rodada de encontros com cineastas e produtores, com vistas à seleção de filmes para o próximo Festival de Cannes. Ele diz esperar que “Ainda estou aqui”, o longa-metragem que Walter Salles rodou neste ano, a partir do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, esteja pronto a tempo de participar do festival.
Na entrevista a seguir ao Estado de Minas, o ex-judoca critica o “clichê de intelectuais” segundo o qual “todos os atletas e amantes do esporte são completos imbecis”, defende que o futebol é um “exemplo de democracia” e revela qual é seu atleta brasileiro favorito. 

 

Uma foto do fundador do judô, Jigoro Kano, e a cadeira que ele usava estão instalados no Kododan, em Tóquio; Thierry Frémaux narra em seu livro uma visita ao local 

Uma foto do fundador do judô, Jigoro Kano, e a cadeira que ele usava estão instalados no Kododan, em Tóquio; Thierry Frémaux narra em seu livro uma visita ao local 

 Yasuyoshi CHIBA 19.2.2020/ AFP

O propósito de “Judoca” parece ser delinear sua autobiografia e, ao mesmo tempo, a biografia do judô, o que é uma escolha nada óbvia para o diretor do Festival de Cannes, de quem esperaríamos um livro de memórias cinematográficas, como o do ex-presidente do festival Gilles Jacob (“La vie passera comme un rêve”). O que o levou a essa aventura?

Na verdade, já escrevi sobre cinema, no meu diário do Festival de Cannes, em que conto sobre a fabricação de um festival de cinema, e tenho também um livro sobre (o cineasta) Bertrand Tavernier (1941-2021), que foi meu mentor. Mas este, de fato, é mais pessoal. Eu poderia tê-lo escrito mesmo se não tivesse nenhuma relação com o Festival de Cannes.

Eu quis tentar mesclar o esporte e o cinema. Trabalho com o cinema há muitos anos, primeiro no Instituto Lumière, em Lyon, e depois em Cannes, mas a primeira parte da minha juventude foi o esporte, foi o judô. E um dia eu me dei conta não de que tinha esquecido o judô, mas de que tinha esquecido o quanto ele foi importante na minha vida e esqueci até mesmo que eu tinha sido professor de judô e que isso preenchia a minha vida. E percebi que eu não queria esquecer isso. É sempre difícil falar do esporte por um viés diferente do da competição e dos resultados, mas a filosofia do judô é compatível com a análise. O que eu queria era falar da filosofia do judô. E à medida em que eu escrevia o livro, me dei conta de que havia muitos pontos comuns entre o judô e o cinema.

O sr. mencionou a “filosofia do judô”. A impressão que se tem pela leitura de seu livro é que o sr. dá muito valor à ideia da construção humana coletiva e parece se sentir pouco à vontade com a naturalidade com que se aceita a ideia da primazia do indivíduo. É correta essa impressão?

Sim, a ideia do coletivo é importante para mim. É por isso que falo sobre minha infância em colônias de férias, porque minha personalidade se construiu sobre o coletivo, e o judô também me ensinou isso. Sozinhos, não fazemos nada. O cinema também é um esporte coletivo. Um diretor necessita dos outros para criar um filme. Para fazer um festival também é assim. O Festival de Cannes é feito pelos artistas, pelos profissionais do mercado, pelo público, pelos jornalistas e críticos. Aprendi cedo essa dupla lição do judô – do coletivo e da transmissão (de conhecimento).

Quer dizer, a gente tenta ser o mais forte possível e, um dia, a gente fica feliz de constatar que ensinou a alguém que vai se tornar mais forte do que nós. Isso é o sucesso. E isso vale para a vida, para a família, para a vida, ou seja, a gente sempre aprende com os outros. E a gente sempre encontra alguém mais forte do que nós. É por isso que cito um dos meus mestres que dizia que perder não importa, se tivermos feito tudo para ganhar.

A propósito de perder, o sr. afirma no livro que o aprendizado da queda é o mais importante de todos. Qual foi a queda que mais lhe ensinou?

A primeira. A primeira no tatame. Mas digamos que a ideia da queda é também, antes de tudo, uma ideia muito poética e muito cinematográfica. Na história do cinema há muitos heróis que demonstram isso. Um herói que cai é mais interessante do que um herói que triunfa; a derrota é mais interessante do que a vitória; aprendemos mais com o fracasso do que com o triunfo. Há um filme francês com Coluche (1944-1986) em que se diz que “mesmo os dias de derrota são grandes dias”. Porque algo aconteceu. No judô, aprendemos não apenas que a queda é importante, que é preciso aprender a cair. Saber cair, conforme eu digo no livro, é saber recomeçar.

De fato são ideias poéticas e belas. E o sr. também diz no livro que prefere aqueles que são preteridos aos que são “amados demais”, referindo-se a diretores de cinema. No entanto, no Festival de Cannes, por exemplo, o que interessa aos cineastas é a glória, a Palma de Ouro, e nada menos do que isso. Como o sr. concilia sua convicção sobre a importância da derrota com sua atuação num mundo movido pela busca pela vitória?

De fato, os artistas, assim como os esportistas, amam a vitória, eles são orgulhosos. E quando ganham uma coisa, querem ganhar outra. Se eles ganharam uma Palma de Ouro, eles querem a segunda. E é verdade que é um pouco estranho fazer uma competição entre obras de arte. E é bizarro pedir isso a um júri. Mas é um modo, especialmente para grandes festivais, como o de Cannes, de aquilatar as obras e os cineastas com uma conotação histórica. Mas eu mesmo acho sempre um pouco estranho pensar que vamos ter uma Palma de Ouro. Porque a Palma de Ouro é definida por um júri formado por nove pessoas.

E se você tivesse nove pessoas diferentes nesse júri, elas iriam decidir algo diferente. Ou talvez esse mesmo júri decidisse algo diferente uma semana antes ou uma semana depois. Já ouvi de cineastas que estiveram no júri de Cannes a confissão de que se equivocaram na decisão. Mas a glória dos filmes é a glória do cinema, e durante as duas semanas do Festival de Cannes sentimos que o cinema está no coração do mundo. De todo modo penso que, afinal, há nisso algo de extraordinário e de insignificante. É como na competição esportiva. É ao mesmo tempo extraordinária e insignificante. Se não aprendemos nada com isso, então ela não serve para nada.

Thierry Frémaux veio ao Brasil neste mês para divulgar seu livro e selecionar filmes para o Festival de Cannes

Thierry Frémaux veio ao Brasil neste mês para divulgar seu livro e selecionar filmes para o Festival de Cannes

LOIC VENANCE / AFP

O sr. menciona de passagem em seu livro que alguns definem o judô como sendo de direita, enquanto outros o percebem como sendo de esquerda, mas não se detém nessa questão. Tampouco aborda, por exemplo, os escândalos esportivos, que são um dos temas do filósofo Alain Badiou no ensaio “Em busca do real perdido”. Sua intenção era refletir sobre o esporte sob outra perspectiva?

Sim. E, de novo, é um pouco como no cinema. O essencial é exprimir algo que vai ajudar a definir um pouco mais as coisas. Eu fico do lado do povo. Cresci assim e não falo em nome do povo, como Alain Badiou, que é um intelectual que não gosta do esporte, o que é um clichê intelectual. Mas também conheço intelectuais que amam o esporte. Para mim, uma partida de futebol é o mais perfeito exemplo do que é uma democracia, porque no campo há adversários, há às vezes situações difíceis, mas há regras, e as regras são respeitadas. Claro que às vezes há violência, mas é raro. O clichê segundo o qual os esportistas e os amantes do esporte são completos imbecis é um clichê dos intelectuais. E como sou um intelectual, me agrada dizer isso.

Há um outro intelectual francês chamado Jean-Claude Michéa que é um fã de esporte e explica que o esporte é a verdade do povo. Acredito muito nisso. É preciso retornar à pureza do esporte. A pureza do esporte, para mim, é o judô, mas é também, por exemplo, Éric Cantona no filme de Ken Loach (“À procura de Eric”, 2009). Michéa escreveu um livro sobre futebol cujo título é “O gol mais bonito era um passe”. Mas obviamente não sou bobo. Vamos receber os Jogos Olímpicos (na França, em 2024).

Certamente vai ser algo apaixonante e certamente também escandaloso. Realizar uma Copa do Mundo no Qatar é algo no mínimo estranho. Acho importante haver gente como Alain Badiou para chamar a atenção sobre esse aspecto, porque o esporte é uma paixão que envolve muito dinheiro. E coisas muito complicadas. É importante que haja gente para falar disso e que haja barreiras e fronteiras que não possam ser ultrapassadas. De toda forma, eu concordo com a ideia de que o esporte é o ópio do povo.

O sr. se declara um apaixonado por listas de esportistas. Pelos exemplos que cita em seu livro, os brasileiros não parecem muito bem colocados. O sr. prefere Maradona a Pelé; Prost a Ayrton Senna. Há algum atleta brasileiro no topo de sua lista?

Bem… é verdade, mas é que Maradona era da minha geração, enquanto Pelé era da geração anterior. E quanto a Alain Prost, ele é de Lyon. Na juventude, eu admirava muito Emerson Fittipaldi. Mas meu herói brasileiro é Juninho Pernambucano, que é o maior jogador da história do Olympique Lyonnais. E, além disso, é também de certa forma um intelectual.

No processo de escrita do livro, que o levou a pesquisar a vida de seus antigos mestres, o sr. se arrependeu de haver abandonado o judô?

Fisicamente, sim. Mas tive alguns problemas de lesão. Em termos de competição, a partir de um certo momento, a competição diz respeito à técnica, e eu parei no quarto dan, enquanto as pessoas da minha idade hoje são sexto dan. Tive alguns problemas de lesão e depois veio o cinema e parei. Mas, de quando em quando, visto o quimono, vejo meus amigos e sou um torcedor dos judocas franceses. Mas que me arrependo, me arrependo. Mas se eu tivesse ficado apenas com o judô, eu me arrependeria de ter deixado o cinema. Temos somente uma vida…

Imagino que o sr. tenha vindo ao Brasil não somente para divulgar o livro mas também para ver filmes que possam estar concluídos até o próximo mês de maio, certo?


Sim, é verdade. Fazia muito tempo que eu não vinha ao Brasil. Com a (produtora) Ilda Santiago, do Festival do Rio, que trabalha com o Festival de Cannes, organizamos três dias de encontros com os amigos produtores e artistas. Fiquei contente de ter tido em Cannes neste ano o filme de Karim Aïnouz (“Firebrand”), ainda que seja um filme inglês.

E ficamos contentes de ter tido o formidável filme de Kleber Mendonça Filho (“Retratos fantasmas”) que se tornou o representante do Brasil no Oscar. Acho que esse deveria ser o primeiro filme de uma série em que cineastas do mundo inteiro fizessem um filme sobre suas próprias cidades, vistas por meio do cinema. Foi um pouco o que tentei fazer com meu livro. Posso escrever a história de Lyon por meio dos clubes de judô e posso escrever a história de Lyon por meio das salas de cinema. Achei muito bonito que ele voltasse aos traços de sua própria história por meio das salas de cinema. Eu voltei aos traços da minha história por intermédio do judô.

O sr. se decepcionou com o resultado das Palmas de Ouro mais recentes?

Nunca comento a Palma de Ouro. É como os filhos, amamos todos. Amo todos os filmes da competição. O que às vezes ocorre é eu me arrepender de um filme que está na mostra Um Certo Olhar e poderia estar em competição (pela Palma de Ouro). E às vezes colocamos em competição filmes frágeis e nos arriscamos um pouco. Mas este ano foi um dos melhores