"Nós, os soldados, estávamos em contato diário com os prisioneiros, e sabíamos que parte deles acabava na câmara de gás", afirma Kurt Sametreiter, ex-SS, em "Relato final"

crédito: NEFLIX/REPRODUÇÃO

Karlheins Lipk foi um oficial da SS, a milícia criminosa da máquina de extermínio nazista. Aos 10 anos, ele ganhou dos avós o uniforme do partido e, aos 14, aderiu à Juventude Hitlerista.

 

Currículo banal que o levaria a inspetor do campo de concentração de Sachsenhausen, onde 200 mil prisioneiros foram escravizados ou mortos. A imagem marcante que ele traz daquela época é a de judeus sendo espancados, chicoteados ou pendurados com as mãos atadas nas costas até morrerem de dor.

 
SEM CULPA

 

O Holocausto não criou uma multidão de nazistas arrependidos. A maneira pela qual os envolvidos reagem hoje à monstruosidade, já no fim de suas vidas, deságua na defesa de suas próprias imagens. Raramente se consideram assassinos ou integrantes de uma organização criminosa, a SS ou a SA.

 

É esse o conteúdo de "Relato final”, documentário disponível na Netflix. Nele, o cineasta inglês Luke Holland trouxe para a intimidade depoimentos antes dados a tribunais, como o de Nuremberg.

 

 

O filme é um novo sobrevoo das aberrações do Terceiro Reich. Relata a rotina dos cerca de 300 alemães que entrevistou desde 2008. A produção estreou no cinema em 2021, mas a pandemia mudou os planos e a trouxe ao streaming.

 

Otto Duaschelleit também pertenceu à SS, mas a lembrança mais remota que ele traz é de um irmão de apenas 11 anos de mente controlada pelo nacional-socialismo. Ele fotografava clientes que entravam nas lojas judaicas e exibia com seu grupo essas "fotos-denúncias" na prefeitura da cidade de Insterburg.

 

INCINERAÇÃO

 

Babá dos cinco filhos de um casal que trabalhava no campo austríaco de Mauthausen, Margarete Schwarz não machucou ninguém, mas lembra de dentistas e médicos judeus que, antes do extermínio, estavam autorizados a atender pacientes no campo de concentração. Seus dentes foram tratados por um deles. Mas quando os prisioneiros judeus não tinham maior qualificação profissional, "eles eram incinerados tão logo chegavam".

 

A propósito, um ex-soldado da SS que não se identificou diz que até hoje ele ainda traz na memória o cheiro do crematório. "Quando os prisioneiros chegavam em maior quantidade, colocavam dois ou três cadáveres numa só bandeja, e pela chaminé saía aquela fumaça em caracóis, como se fosse a queima de pneus."

 

Um guarda da SS tinha como pai o ferroviário encarregado da manobra dos trens que descarregavam os prisioneiros em seguida distribuídos aos vários campos de Auschwitz. "Eles chegavam, mas nunca vinham de volta. É porque saiam pela chaminé", disse pateticamente.

 

Marianne Chantellau encobre com motivação banal o que foi uma opção ideológica. Ela diz ter sido estimulada a aderir à Juventude Hitlerista porque, naquele coletivo, jogava-se bola e se frequentava a piscina, e "tudo isso era muito saudável".

 

O nazismo também estimulou a tricotagem entre três idosas austríacas. Elas se lembram quando os americanos chegaram e se puseram a revistar as casas. Prenderam o namorado de uma delas, que era soldado da SS. Outra escondeu o marido, também da milícia nazista, e ele voltou à vida civil meses depois.

 

Antes disso, diz uma delas, o extermínio dos judeus era comentado em voz baixa. "Ninguém queria se arriscar, porque poderíamos também ser enviadas para um campo de concentração."

 

O documentário menciona uma das 24 cidades em que foi aplicado o programa de eutanásia contra deficientes. "Chegavam os ônibus com janelas enegrecidas, descarregavam os 'indignos de viver' (sic), e o corpo deles era depois incinerado."


NEGACIONISMO

 

O programa, contra o qual a Igreja Católica se insurgiu, durou de 1939 a 1941 e matou pouco mais de 70 mil alemães. Mas teria prosseguido clandestinamente e feito em torno de 200 mil vítimas, segundo a Enciclopédia do Holocausto.

 

Um SS que era guarda no campo de Dachau afirma que na época não sabia que os judeus estavam sendo assassinados. "Eu pensava que eram apenas prisioneiros políticos."

 

Mas a ele se contrapõe Kurt Sametreiter, também ex-SS. "Nós, os soldados, estávamos em contato diário com os prisioneiros, e sabíamos que uma parte deles acabava na câmara de gás."

 

Pior que os que fingem ignorância, só os negacionistas, como um ex-SS não identificado. "É mentira o número de 6 milhões de mortos alardeado pelos judeus. Eu sinto que não foi assim." Cada um repete o absurdo que quiser contra números historicamente verificados.