Um abismo separa a máquina de escrever da inteligência artificial. Mas não para Arnaldo Baptista, o genial cantor, compositor, instrumentista, fundador d'Os Mutantes – também pintor e escritor. Mesmo quieto, há cinco anos sem fazer show (o último foi em 2018, muito antes da pandemia), ele, aos 75, continua aprontando das suas. Com a ajuda dos amigos, claro.
Recém-lançado, “Ficções completas” (Grafatório Edições) reúne três textos de Arnaldo datados da década de 1970: dois contos, “O abrigo” e “The Moonshiners”, e a novela “Rebeldes entre os rebeldes”. Os dois primeiros são inéditos (“The Moonshiners” foi escrito originalmente em inglês); o texto de maior fôlego havia sido publicado anteriormente.
Vovô Horácio em ação
Com franca influência da ficção científica, os escritos estavam guardados pela mulher do músico, Lucinha Barbosa, da forma como vieram ao mundo. Datilografados em uma velha máquina mecânica. O volume traz várias ilustrações. Realizadas, como devidamente creditado, pelo “Supercomputador Horácio”.
“Meu avô era o coronel Horácio, que teve 13 filhos. Era uma pessoa que tinha conhecimento do estado do mundo das coisas. Ele falava: 'Deus te abençoe, cabeça de boi'”, conta Arnaldo, aos risos. Ele batizou um dos personagens de “Rebeldes entre os rebeldes” de Horácio – a inteligência artificial que comanda a nave-lua Phobos.
Como IA não existia quando o texto foi escrito, 50 anos atrás, Horácio é chamado de máquina. As ilustrações do volume foram realizadas por IA, com projeto gráfico de Pablo Blanco.
“Ficções completas” nasceu por iniciativa de uma editora pequena de Londrina, interior do Paraná, capitaneada por Felipe Melhado e Pablo Blanco. Quem fez a ponte entre editora e autor foi o jornalista Jotabê Medeiros.
“A literatura de Arnaldo Baptista parece ter uma conexão direta com a origem latina da palavra prosa, que significa comunicação direta, livre – mas não, no caso dele, automática. Enfrentando sua consciência em busca do sentido da vida, Arnaldo escavou passagens para o interior de sua própria odisseia psíquica”, escreve Jotabê no prefácio.
Inteligência artificial e pinturas
Em “O abrigo”, a Terra, inabitável, faz com que seu protagonista construa um lugar para se salvar – nem que para isso tenha de matar os outros. “The Moonshiners” marca o encontro de dois humanos com duas alienígenas e a criação de uma improvável comunidade. Já “Rebeldes entre os rebeldes” é saga sci-fi, com fugas espaciais e máquinas super-inteligentes.
O livro teve apenas uma noite de autógrafos, no início de dezembro, em São Paulo. Não haverá outra. “Foi um susto”, diz Arnaldo, quando viu o livro pronto. “As pinturas do Horácio são tão maravilhosas e retratam totalmente o que pensei naquela época”, conta. “Achei bom o livro, não me perdi nas emoções.”
Depois de passar a maior parte da pandemia em seu apartamento em Belo Horizonte, Arnaldo e Lucinha estão de volta ao sítio em Juiz de Fora. De lá não deverão sair tão cedo, pois estão em meio a uma reforma.
“Ando pintando bastante, também faço música. Mas por etapas. Atualmente estou gravando a bateria. Tenho de coordenar tudo, são mais de 12 tambores. Então tenho que estudar um pouco de bateria. Depois coloco contrabaixo, guitarra, efeitos de voz no teclado”, ele diz sobre o trabalho no estúdio.
Tem lido Timothy Leary, ícone da contracultura, e ouvido bambas dos anos 1960 e 1970, Steppenwolf e Jack Bruce entre eles. “É tudo valvulado, o que me deixa empolgado em fazer algo a respeito”, diz. Arnaldo não se furta aos exercícios físicos, inclusive de respiração, para “ficar mais aberto”. Também escreve, a mão. Além dos três textos de “Ficções completas”, há muitos mais, em cadernos guardados por Lucinha.
Trecho de “O abrigo”
Tudo começou quando eu, tomado de ódio insano por uma mulher, resolvi começar a vida precavido. Havia muito tempo que voltara minhas atenções para a construção de uma casa própria, pois embora não possuísse muito de meu, havia um terreno em meio a um deserto onde poderia construir. Era uma terrinha estranha, com um clima tórrido e seco, mas no Brasil a vegetação medra quase que em todo lugar. Havia pois uma espécie de gramínea que recobria tudo e, portanto, para construir a casa própria, tive de recorrer a um trator, pois eu mesmo não conseguiria nunca 'limpar o terreno das cobras', como diz o vulgo... O tratorista deveria ser morto após o serviço para manter o segredo da obra, e por isso eu também havia comprado um 38 cano curto que trazia no coldre, logo abaixo da asa direita.”
“FICÇÕES COMPLETAS”
De Arnaldo Baptista
Grafatório Edições
208 páginas
R$ 79
À venda no site grafatorio.com